Memória “tradição oral”

Memória “tradição oral”>> As rodas de dança e as fogueiras são mais usuais e difundidos nas aldeias, e até há pouco tempo estavam bem presentes nas periferias dos centros urbanos.
Atualmente, com o advento da modernização, essas práticas acontecem de forma mais irregular ou esporádica nas grandes cidades; porém, nas aldeias elas continuam a ser frequentemente realizadas e cultivadas com o estímulo e apoio das gerações mais velhas.
Essas atividades abarcam geralmente a dança e a canção, elementos-chave para o seu sucesso.
Nas rodas de dança, os homens, as mulheres e/ ou as crianças, dançam e cantam em círculos, recorrendo sempre ao batuque e às palmas.
Tanto podem manifestar-se em cerimónias ritualísticas como em atividades profanas de recreação, com canções específicas ou improvisadas, adaptadas ao momento e à situação vivida ou retratada.
As fogueiras são realizadas com frequência no tempo seco ou cacimbo (inverno), por causa das baixas temperaturas que se fazem sentir nesse período.
Ainda em tempos recentes, nas periferias das cidades, as pessoas costumavam reunir-se à volta da fogueira (e essa fogueira tanto podia ser feita de lenha ou feita num fogareiro) para contarem ou ouvirem contar histórias, contos, lendas, genealogias etc., sempre acompanhadas de canções e com a participação de todos, enquanto se aquecem juntos.

Memória “tradição oral” A memória dos Negros velhos e a valorização da tradição

Ao remetermos à abordagem da memória em nosso estudo, temos em mira que as pesquisas concernentes a esta temática recorrente no interesse de historiadores e estudiosos da literatura tornam-se relevantes à medida que buscam investigar aspectos da cultura popular, da vida em comunidade, sublinhando ainda a identidade de um povo, ao atentar para seus costumes, religiosidade, tradições, enfim, nuanças que dizem respeito à constituição social da memória.
Percorrendo o passado e os meandros da valorização da memória para a constituição da história e da identidade de um povo, podemos reportar as civilizações antigas para entender a origem da história atrelada aos mitos.
O terreno sobre o qual a história inicia seu trabalho perscrutador será́, assim, sistematizado pelo aspecto místico, sendo os mitos fornecedores de respostas para todas as perguntas, esclarecedores daquilo que no passado não pareceu compreensível.
Ocorre que os relatos místicos emergidos com a tradição, fundada em aspectos religiosos, em costumes muito antigos, fornecem, há tempos, subsídios indispensáveis para se compreender o que caracteriza, dá forma e garante o funcionamento a uma sociedade.
É sabido que os mitos, as crenças, matizados por acervo religioso, histórico e, muita vez, imaginário, eram transmitidos via oralidade, ratificando, desta feita, o estabelecimento de uma tradição.
A perpetuação desta, sua presentificação e/ou cristalização no imaginário coletivo, divulgada através da oralidade, encontrará, pois, veículo poderoso nos textos literários, asseverando a estreita relação entre história e literatura.
As narrativas orais, ouvidas dos velhos1, não podem ser percebidas como invenções particulares, uma vez que mesmo se configurando como histórias pessoais, são influenciadas, indubitavelmente, pela voz narradora, seu meio de interação, suas ordens morais, sociais e outros aspectos que tais.
É licito dizer que, pelo exercício de contar e recontar histórias sustenta-se a ciência do sujeito sobre si mesmo e sobre os outros com os quais interage em comunidade.
Nesse sentido, Walter Benjamin (1980) entenderá a narrativa como transmissão de experiências entre gerações, consoante o movimento coletivo de tradições, ao relacionar fatos narrados com fatos vivenciados, não sendo possível conceber narrativa alijada da ideia de memória.
O narrador, incumbido do trabalho de rememorar, ainda que nos relate histórias marcadas por visões de mundo próprias e peculiares, transcende a memória individual, sendo a memória sempre coletiva e, portanto, social, formada, como se quer reiterar, na esteira do grupo a que pertence.
É comum ver os mais velhos sentarem-se com os mais novos para lhes ensinarem os hábitos e costumes do seu povo; mas, hoje em dia, estes costumes só acontecem em lugares mais remotos, normalmente no mundo rural.
Contra princípios seculares de respeito pelos mais velhos, verifica-se uma tendência crescente em certos meios para os velhos serem desprezados e acusados de feiticeiros; muitos jovens, sobretudo os que vivem na cidade, não têm interesse em aprender as tradições ancestrais, que veem como algo ultrapassado, optando por formas culturais e de entretenimento da aldeia global, usando os vários meios de comunicação existentes para se ligarem a uma realidade virtual muito diferente da dos seus pais e avós.
Nas aldeias, e focando-nos sobretudo em Angola, a fogueira ainda é uma constante, sendo uma das cerimónias vitais para a transmissão da tradição oral.
Essa atividade pode ser comunitária, grupal ou familiar, e é sempre acompanhada por alguns “quitutes” (aperitivos) da terra, como banana, bombó (mandioca) e milho assado com jinguba (amendoim) torrada e chá ou café.
Diz-se que é “comunitária”, quando se realiza dentro da comunidade e com a participação de todos; é “grupal” quando é específica de um grupo (homens, mulheres, crianças), e “familiar”, a que ocorre dentro do seio familiar, como quando um chefe de família, o avô (ou a avó), a mãe ou o filho mais velho reúne com o resto da família para esse momento especial

Memória “tradição oral” – A cosmovisão seja transmitida

Nestes territórios, a preservação da tradição oral é igualmente da responsabilidade dos mais velhos, dos mestres da palavra e dos iniciados, que transmitem toda a sabedoria que têm gravada na memória aos neófitos, ao grupo e à população em geral, nas reuniões, nos óbitos e nas festas, para que não morra com eles, mas fique para as gerações vindouras.
Os mais velhos são exímios contadores e iniciadores, que, no ato de contar uma história, recriam rituais dos seus antepassados; assim, preparam e embalam a plateia que toma parte da encenação e dela participa, com cânticos, dança, aplausos, assobios e gritos. Laura Padilha descreve desta forma esse momento mágico:
“O contador e seus ouvintes são seres em interação para quem o dito cria a necessária cumplicidade e reitera que é preciso ser, na força da diferença, preservando-se com isso o vasto manancial do saber autóctone. Do ponto de vista da produção cultural, a arte de contar é uma prática ritualística, um ato de iniciação ao universo da africanidade, e tal prática e ato são, sobretudo, um gesto de prazer pelo qual o mundo real dá lugar ao momento possível que, feito voz, desengrena a realidade e desata a fantasia. (Padilha, 2005:21)”
Cada som, cada ritmo tem um significado importante: por isso, as canções sempre se referem aos costumes, e orientam as pessoas no sentido de criarem um modo de vida salutar e gregário, regido pelos valores e normas de conduta do seu povo.

Assim, a canção torna-se uma ferramenta poderosa para o restauro das forças e a expulsão da tristeza para manter sempre viva a alegria

Conservar a memória coletiva das nações africanas implica a manutenção do patrimônio das tradições orais.
Os tensos processos de ruptura e descontinuidades experimentados pelas nações angolanas e moçambicanas não podem ser esquecidos, porém, sempre lembrados, refletidos, recontados, de geração a geração, juntamente à divulgação dos matizes que caracterizam a cultura e as tradições desses países.
Rememorar, pois, constitui exercício demasiadamente auxiliador das interpretações do presente que se constrói paulatinamente.
A releitura das crenças africanas, promovida no âmbito literário, pelos autores estudados, ao buscar luz no passado e suas origens, subsidiam na reconstrução das identidades das nações mencionadas.
Neste intuito, o mais-velho, detentor da sabedoria que perpetua a cultura, representa aquele que tem o poder de remeter ao passado para que o presente se faça melhor entendido e o futuro melhor engendrado, elemento sagrado e fundamental na tarefa de mediar valores antigos e valores que incidem sobre a sociedade contemporânea.
A comemoração da abolição acontece até hoje em vários terreiros de Umbanda que atribuem a essa data o dia do “Preto Velho”, entidade dessa religião que simboliza a sabedoria.
A memória da luta abolicionista e o protagonismo dos negros não foram enfatizadas na história .
A narrativa oficial foi explicitada já em 1899, no manual de leitura escolar de João Vieira de Almeida intitulado Pátria. Nele é reconhecido o papel de negros como Luís Gama e José do Patrocínio, mas, para o autor, a força dos senhores de escravos impediria a libertação, de modo que a abolição teria então vindo da ação da filha de dom Pedro II.

“Se não fosse a coragem, que revelou a princesa imperial, na ocasião da assinatura do decreto libertador, ainda aí estaria a instituição maldita. A raça negra, portanto, no Brasil, tem a rigorosa obrigação de venerar a memória da humanitária senhora que, com o sacrifício do seu trono, quebrou os grilhões que encadeavam uma raça infeliz (…) digam, portanto, o que quiserem: a abolição da escravidão, no Brasil, é devida, se não exclusivamente, ao menos em grande parte, a Isabel, a Redentora.”

Essa é uma forma de narrar a história do Brasil que perdura até hoje: as conquistas sociais não são produto do enfrentamento e da resistência, mas da dádiva dos governantes bondosos e corajosos que se afastam das elites em favor do povo.
Representados como santos, os dirigentes do Estado são creditados pelo protagonismo da história, como se sem eles as principais conquistas não pudessem ter sido alcançadas. É com base nisso que Vieira de Almeida diz que a princesa Isabel não só assinou uma lei, mas que fez por si a Abolição.
Com a intenção de resgatar o protagonismo na história do País, o movimento negro militante passou a buscar símbolos, personagens e datas históricas alternativas.
A iniciativa mais aceita veio do poeta gaúcho Oliveira Silveira, em 1971.
Para ele, a abolição não significara liberdade porque não modificou a dominação e a desigualdade.
Aponta, assim, para uma ruptura com a narrativa tradicional como parte da luta pela justiça social.
Combatendo a versão oficial do 13 de Maio e a tese da democracia racial no Brasil divulgada pelos governos militares, não demorou para ele encontrar no Quilombo dos Palmares o símbolo que tanto procurava.
Formado provavelmente em fins do século XVI e localizado no interior dos atuais estados de Alagoas e Pernambuco, Palmares constituiu-se de povoamentos fortificados habitados principalmente por ex-escravos negros, além de índios e brancos fugitivos da sociedade colonial.
Apesar da diversidade, os povoamentos eram organizados política e militarmente nos moldes das sociedades guerreiras de Angola, que usavam a palavra quilombo para designar campos militares.

Um afro abraço.
Claudia Vitalino
UNEGRO-União de Negras e Negros Pela Igualdade -Pesquisadora-historiadora
CEVENB RJ- Comissão estadual da Verdade da Escravidão Negra do Estado do Rio de Janeiro
Comissão Estadual Pequena África.
Fonte: BENJAMIN, Walter. O narrador. In:_____. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
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Claudia vitalino

UNEGRO-União de Negras e Negros Pela Igualdade -Pesquisadora-historiadora CEVENB RJ- Comissão estadual da Verdade da Escravidão Negra do Estado do Rio de Janeiro Comissão Estadual Pequena Africa. Email: claudiamzvittalino@hotmail.com / vitalinoclaudia59@gmail.com

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