Jung, o curador ferido – L. F. Barros

Jung, o curador ferido – L. F. Barros

I – Surtos psicóticos e as obras de Jung:

Iniciando com a confissão de que a problemática das doenças mentais e da criminalidade, associada a alguns (raros) casos de distúrbios psíquicos, “escapa de todo ao meu campo habitual de cogitações”.

E, ademais, declarando-se “apenas um jornalista atraído pelos assuntos do dia”, Moacir Werneck de Castro publicou “Carl Jung e o motoboy” (JT, 25/8).

Em seu devaneio declarou que, “no momento em que especulava (…) sobre o impulso de morte do motoboy”, surpreendeu-se pela “constatação inesperada” de que Jung viveu surtos psicóticos.

E, assim, poderia também ter sido um “maníaco do parque”. Essa alucinada ilação do articulista se deu por conta da leitura de recente e tendenciosa biografia de Jung. Sendo esta de autoria de F. McLynn.

II – Doença mental e criminalidade:

Outrossim, também pelo desconhecimento de Werneck de Castro a respeito da inexistência de necessária relação entre doença mental e criminalidade.

E desta forma o jornalista assim conclui o seu artigo. “Não seria muito de espantar que um dia o médico virasse monstro e fosse devorar moçoilas incautas num parque em Zurique”.

Aliás, para completar a leviandade ficcional de suas especulações a respeito de assunto que confessa desconhecer, faltou apenas afirmar que não será de espanto que um dia Francisco de Assis Pereira talvez produza uma obra equivalente à de Carl Gustav Jung.

A biografia a que o jornalista se refere não apresenta nenhuma nova documentação sobre a vida do psicólogo suíço. E para ninguém da área é novidade que Jung experienciou fortes tendências psicóticas.

No entanto, foi o profundo contato com seu próprio sofrimento que permitiu a Jung a empatia com o sofrimento de seus pacientes.

Conquanto a sua compreensão deles e o desenvolvimento de sua psicologia.

Seguindo o arquétipo do curador ferido é que Jung afirmava que o limite do poder terapêutico de cada um é dado pela profundidade de suas próprias feridas. Inegavelmente a ferida de Jung foi de natureza psicótica.

Só por isto que enfim alcançou as raízes do inconsciente coletivo e da percepção cósmica dos arquétipos. Certamente foi a partir de seu contato cotidiano por dez anos com seus pacientes psicóticos em Bourghösli.

E também, decerto, pela leitura de Schreber, o mais ilustre psicótico da história da psiquiatria.

III – Neuroses e as obras de Freud:

A ferida de Freud foi de natureza neurótica. Por isto alcançou outras teorias e outras valiosas contribuições. Foi de seu próprio sofrimento, a partir da própria autoanálise e de sua própria sexualidade reprimida que o médico de Viena desenvolveu a psicanálise, em plena era vitoriana.

Na mesma era vitoriana, também um homem do século 19, embora a maior parte de sua obra e vida pertença aos anos 1900, Jung alcançou outras posturas frente à sexualidade. Principalmente por considerar que a energia psíquica, a libido, não se constitui apenas de impulsos sexuais.

IV – Importância das obras de Jung e Freud:

Para Jung, a psicologia de Freud, assim como a de Adler e a de outros autores, inclusive a psicologia analítica que ele próprio fundou, são diferentes. Posto que constituídas a partir da individualidade de seus fundadores.

Todas são valiosas. E cada qual é indispensável exatamente pelo fato de que à multiplicidade das subjetividades dos fundadores corresponde a multiplicidade das pessoas que sofrem de conflitos psicológicos e psiquiátricos.

Em outras palavras: muitas são as abordagens psicológicas. E isso porque as pessoas são diferentes entre si. Insensatos são os que pretendem fomentar rixas entre grandes pensadores. Postulando então a hegemonia de leituras que são complementares e não antagônicas.

Deste modo, a ninguém interessa a vida privada de Jung ou de Freud para a validação de suas teorias.

Da mesma maneira que não interessa a ninguém a vida privada do presidente Clinton para o julgamento de suas ações como estadista.

É certo que a ninguém é dado o direito de desqualificar a vida e a obra de Poe, Nerval, Hemingway, Dostoievsky, Diógenes, Hölderlin, Van Gogh, Nietzsche, Artaud, Camille Claudel, entre tantos outros. Simplesmente a partir de menções preconceituosas aos males psíquicos de que sofreram.

Portanto, igualmente, referências às tendências neuróticas de Freud e às tendências psicóticas de Jung não podem ser utilizadas em desrespeito às suas pessoas e a sua obra.

V – Os curadores e suas próprias feridas:

É por esta razão que com tristeza li recentemente, também nesta coluna, artigo do ensaísta e amigo Gilberto de Mello Kujawski. Nele eram tecidas interpretações críticas à obra de Freud a partir de comentários desairosos à pessoa de Sigmund Freud.

Decerto que Freud também foi um curador não maior do que o tamanho de sua ferida.

E foi um grande curador. O sofrimento que se translada em dom curativo é respeitável sublimação alquímica de natureza a um tempo divinal. Ao mesmo tempo, é essencialmente humana.

Trata-se de campo sagrado que não se pode profanar pela heresia dos que nunca cogitaram a respeito do assunto. Daqueles que não conhecem a dor psíquica a esse nível.

L. F. Barros é educador, escritor e presidente do Projeto Fênix – Associação Nacional Pró-Saúde (artigo publicado em 06/09/98, no Jornal da Tarde).




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