PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO IV

PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO IV

Armando Nascimento Rosa

«Dizem os ocultistas, ou alguns deles, que há momentos supremos da alma em que ela recorda, com a emoção ou com parte da memória, um momento, ou um aspecto, ou uma sombra, de uma encarnação anterior. E então, como regressa a um tempo que está mais próximo que o seu presente da origem e do começo das coisas, sente, em certo modo, uma infância e uma libertação.» 21

A promessa vivida da libertação espiritual é especificamente gnóstica pois releva de um saber e não de um acreditar, de acordo com as palavras que subsistiram até nós, fragmentárias, de um Basilides ou de um Valentino; a este último heresiarca se atribuem as seguintes máximas, colhidas em Hans Jonas (já Elaine Pagels, dá-as como sendo da autoria do «professor gnóstico» 22 Teódoto, redigidas na Ásia Menor ca. 140-160), que condensam a promessa gnóstica da iluminação interior do pneuma espiritual.

«O que nos faz livres é o conhecimento de quem fomos, [e] no que nos tornámos; onde estávamos, [e] naquilo em que fomos atirados; para onde velozmente vamos, [e] de onde nós somos redimidos; o que é o nascimento e o renascimento.» 23

Mas esse saber revolutivo, dada a sua eclosão no sujeito ser de ordem não empírica, isto é, não fenoménica, presta-se à dúvida mais inquietante; convicção que flutua ao sabor dos estados de alma e da disposição da psique individual.

Tratando-se de um peculiar caso de poeta-filósofo como Pessoa o é, o tempo existencial e psicológico introduzirá as tensões e os antagonismos no modo de aceitar a possibilidade em descortinar algo do mistério do mundo – mesmo se o sujeito poético heteronímico insista no embuste de não haver mistério do mundo nenhum.

Num texto redigido em inglês, teria Pessoa os seus vinte e dois anos, cujas palavras iniciais já aqui inserimos no tocante à auto-interpretação feita da aliança dialéctica entre poesia e filosofia, podemos ler uma magnífica declaração do sentido gnóstico da sua poesia; prosa autopsicográfica na qual se articulam, em harmonia inesperada neste indisciplinador de almas, vários nexos teóricos que vivamente corroboram o nosso discurso, como sejam: a captação da beleza do mundo no tempo momentâneo que deflagra a criação poética; a explicação da poesia como o testemunho atónito de alguém que experimentou uma queda abrupta na realidade terrena; e o desejo de conservar a recordação de um outro mundo, pela reminiscência platónica, que é saudade de um tempo anterior à temporalidade vivente, através da escrita poética.

Eis no original o pórtico e o explicit deste texto sublime.

«I was a poet animated by philosophy, not a philosopher with poetic faculties. I loved to admire the beauty of things, to trace in the imperceptible through the minute the poetic soul of the universe.

The poetry of the earth is never dead. ( …)

For poetry is astonishment, admiration, as of a being fallen from the skies taking full consciousness of his fall, astonished about things. As of one who knew things in their souls, striving to remember this knowledge, remembering that it was not thus he knew them, not under these forms and these conditions, but remembering nothing more.» 24

De nada mais se recorda o poeta, embora saiba que, desse lugar exterior ao nosso cósmico tempo, é a poesia o receptáculo de um conhecimento quase oracular – tal nos diz ele, no soneto parcialmente citado, acerca das «bruscas frases» que a seus «lábios vêm» e lhe soam a «um outro e anómalo sentido». 25

Como o comentávamos antes, de modo algum o optimismo gnoseológico de Pessoa se confessa assim invariavelmente confiante nos conteúdos achados pelo espírito ou despertados por epifanias sensoriais.

O gnosticismo pessoano é dilacerante e atormentado, mas iluminante até à cegueira, amplificador até ao silêncio; predicados afinal de toda a genuína gnose – do dualismo mais radical ao gradativo -, interpretada como consciencialização aguda da nossa fissão ontológica, do exílio em que estamos face ao lugar abissal de onde outrora proveio a essência de nós mesmos.

Pessoa enuncia-o com a sua habitual lucidez de um redactor de epitáfios.

«Filhos da treva e da dúvida, somos o não encontrar-se, o sono e o silêncio de nós próprios.» 26

O sono é topos omnipresente da palavra pessoana, que com ele se debate e é também no sono, dissémo-lo, que incide uma das caracterizações que os textos gnósticos apontam para a imperfeição do nosso estado; o espírito subsiste alienado numa duração vital soporífera de forma a não conseguir alcançar a verdade de si próprio.

O narrador da desassossegada prosa expressa-o em frase desgarrada e frustre:

«Há muito tempo que não sou eu.» 27

No Pimandro, tratado proeminente do Corpus Hermeticum, uma das leituras de Pessoa, destacam-se o sono e o amor – hypnos e eros -, como marcas da descida passional do espírito humano envolvido no abraço da matéria.

Neste romancear mitológico de uma antropogonia dual, o sono intervala e diminui o tempo activo da consciência, enquanto a divisão sexuada dos corpos físicos institui uma carência em cada indivíduo, signo de inacabamento e cilada da natureza para perpetuar infinitamente, por meio dos organismos finitos, a sua paixão pelas entidades metafísicas que narcisicamente se enredaram na miragem idílica da matéria.

Não obstante ser esta uma versão da queda do Antropos primordial que originou o actual género humano, o hermetismo é a corrente menos pessimista da gnose, a mais helenizante e, por isso, a que com menor intensidade bélica se serve da radicalização maniqueia entre a Luz e as Trevas, ao pintar o seu quadro do universo. Stuart Holroyd sintetiza as razões de haver no hermetismo uma gradação na escala do ser e não um abismo inultrapassável entre o que está em cima e o que está em baixo, ao sublinhar uma importante diferença, nas imagens de Deus e do Demiurgo, que separa a gnose hermética das outras formas de gnosticismo judaizante ou cristológico.

«Outra diferença notável [entre o Gnosticismo Cristão e o Hermético] é que, neste último, o Deus mais elevado e o criador, ou Demiurgo, não são designados como poderes opostos ou antitéticos, e consequentemente o cosmos e o mundo material são entendidos como ordens do ser deficientes mas não degeneradas, não havendo nele nenhuma expressão da característica repugnância gnóstica face ao físico e ao material.» 28

Antes de regressarmos a Pessoa, vejamos ainda como Harold Bloom analisa esta questão no seu Omens of Millennium – The Gnosis of Angels, Dreams and Resurrection, ao sopesar a ambivalência com que a visão hermética do humano no tempo se desdobra; se bem que a experiência da encarnação terrena esteja subordinada à premonição da morte que o sono simboliza e à incompletude exposta no dimorfismo sexual, para a gnose hermética a nossa essência persiste inalterada para além do tempo, vigilante, andrógina e inquilina da eternidade.

«Acostumados que estamos às considerações Judaicas e Cristãs acerca deste acontecimento, ou às iradas inversões Gnósticas dessas mesmas considerações, somos promissoramente de início aquietados pelo tom equalizante desta versão Hermetista.
A sua forma é subtil e nostálgica, e também sobrenaturalmente calma, ainda que descreva catástrofe e não uma Queda afortunada. Sermos drogados pelo abraço da natureza naquilo que designamos como mais natural em nós, o nosso sono e os nossos desejos sexuais, é ao mesmo tempo um fado agradável e infeliz, uma vez que o que permanece imortal em nós é tanto andrógino como insone. O Gnosticismo Pagão dos Hermetistas é bastante mais gentil e resignado no que concerne a este paradoxo do que tudo o que possamos encontrar no Gnosticismo Judaico ou Cristão.» 29

A perspectiva hermética convida à harmonizante serenidade e apaziguamento sapienciais, convocando igualmente uma espécie de compaixão interrogativa que visa reabilitar ontologicamente os estratos mais elementares de tudo o que existe; tripartindo-se então nas vias heterodoxas propugnadas pelo humanismo hermetista: a magia (animada por intuitos positivos, como no Próspero d’A Tempestade, obra dramatúrgica cujo enigma sempre obsidiou Pessoa), a alquimia e a astrologia; temáticas que se estendem por páginas soltas de meditações ortónimas.

continua




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