A Constituição de 1824

A Constituição de 1824

O Racismo como Herança

A população negra teve inserção demorada e difícil no sistema nacional de ensino.

1. Leis

A Constituição de 1824 ditava que a escola era um direito de todos os cidadãos, o que não incluía os escravos.

A cidadania se estendia aos portugueses, filhos de portugueses e libertos.

Os direitos dos “livres”, contudo, estavam condicionados a ter rendimentos, posses e “a soma de oitocentos mil réis.”

Na ocasião da constituinte, José Bonifácio de Andrade e Silva já apontava a escravidão como sistema arcaico.

Antecipando a orfandade que em breve o estado lhes reservaria, preferindo reconhecer direitos aos imigrantes.

2. Escolas

Entre a Constituição de 1824 e a de 1891 perdurou um sistema escolar que reservava aulas domiciliares aos ricos; escolas públicas aos pobres e livres nascidos no Brasil, ou cursos em seminários católicos, para poucos.

Nascidos na África não tinham direito a frequentar esses espaços.

No Rio de Janeiro, por exemplo, proibia-se ir à escola os que tivessem doença contagiosa e os negros, “ainda que libertos”.

3. Ofícios

Na Primeira República, a preocupação passa a ser transformar os “ingênuos”.

Eram chamados assim os beneficiados pela Lei do Ventre Livre em “trabalhadores úteis”, evitando que replicassem a indolência dos adultos pobres.

A educação utilitária e a aprendizagem de ofícios se tornam destino “natural” dos negros e desvalidos, formando uma mentalidade sobre esse grupo.

4. Voto

Analfabetos na maioria, aos negros também era subtraído o direito de votar.

Era um paradoxo: até 1888 eles tinham sido privados do direito de estudar.

Definidos como “cegos intelectuais”, sofrem novo baque ao não poderem se organizar por meio do voto, o que retarda mais uma vez a inserção no sistema educacional.

5. Naturalização

“A naturalização foi um processo de dominação baseado em leis.
Nos tempos de dom Pedro I era assim: todo cidadão brasileiro tinha direito à educação.
E cidadãos eram os portugueses e seus descendentes nascidos no Brasil.
Poderia até haver o direito à liberdade, mas ser escravo livre não dava direito à educação.”

“A naturalização é quando a gente não pensa mais.
Deduz.
A própria escola fez isso – os negros não estavam lá porque não era para estar.
E se estivessem, era exceção.

Vemos negro no avião como francês do mesmo modo que vemos a negra como empregada.
Já me confundiram com o bedel em sala de aula.
O que é mais cruel na naturalização?
O oprimido aceitar a opressão, a violência como natural.
É ver o outro como naturalmente não fadado ao direito…”

“A pior coisa é quando o dominado faz o discurso da naturalização: vou por meu filho interno para ver se aprende alguma coisa. Vai para o exército para aprender a respeitar. Quando o explorado repete cânones do explorador, tem-se a perfeição.”

6. O Racismo como herança

“Quatrocentos anos de dominação cultural e econômica na cabeça de um dominado acaba tendo uma força muito grande.
Temos uma naturalização da tortura – tem de bater senão não confessa.
É vagabundo, tem de dar porrada.
Essa mentalidade vem da escravidão.

O sonho da carteira assinada: a CLT, que é da década de 1930, traz o reconhecimento de ser registrado, o direito a salário.
Isso vem acompanhado do aceite das pessoas de que é melhor colocar meu filho para aprender um ofício.”

“De 1850 em diante, decreta-se o fim do tráfico, com a Lei Eusébio de Queiroz.

Começa a emergir e revolução industrial e é preciso de braços para fazer produtos fabris.
A Revolução Industrial já corria, mas Portugal se opõe às reformas propostas pelos ingleses.
Fim do tráfico? Fim da escravidão? Remuneração, fim do latifúndio?

Dom Pedro II se abraça com Thomas de Gabineau e a teoria racial emergente, porque interessa para ele a manutenção do Padroado.
Os interesses econômicos se aproveitam de teoria pseudocientíficas com base racial. Com os judeus foi a mesma coisa…”

7. Portugal e Brasil

“Para entender a questão da ausência de negros nas escolas brasileiras, não temos de estudar apenas a história da África, mas a história de Portugal.
É na Península Ibérica que está a matriz do país que somos hoje.
Em 1551, Lisboa tinha 100 mil habitantes, 10% eram negros.”

8. Padroado

“O Padroado [sistema de poder que ali repressão, ideologia, religião] português sobrevivia em função de três bases – a monocultura; o latifúndio e a escravidão.
O Padroado resistiu na Península Ibérica.
Resistiu à Reforma Protestante.

Portugal e Espanha viraram as costas para a modernidade.
Não lhes interessava o que estava acontecendo na Inglaterra, Alemanha, França e Itália.
Preferiram manter uma cultura parasitária.
Foram 400 anos de Padroado, tempo o bastante para ser encarado como algo natural.”

“Um filho do senhor de engenho vai para Coimbra, estudar.
Outro está na Casa Grande – vai herdar as propriedades, ser o sinhozinho.
O terceiro vai para o sacerdócio.

O padroado português inventou categorias.
Só duas delas precisam ler e escrever.
O que não inclui os proprietários e a grande massa de índios e negros.

Com o tempo, até conhecemos negros letrados – Luiz Gama, José do Patrocínio, Machado de Assis, Castro Alves, os irmãos Rebouças.
Mas não conhecemos nenhum negro que pertença à categoria dos proprietários”.

9. Imigrantes

“Com a vinda de dom João VI para o Brasil, em 1808, surgiu uma baixa classe média, que começou a exercer ofícios urbanos, o que inclui cuidar dos escravos.
Eram os capitães do mato, origem da nossa polícia.
É um assunto delicado.
O Brasil todo começa aí.
O Wilson Martins que me desculpe, mas os imigrantes não inventaram o país.”

“Debret descreve o Rio de janeiro como uma sociedade negra, porque só tinha trabalhadores negros.
Mas não quiseram dar oportunidade à massa trabalhadora que estava aqui, que conhecia o trabalho rural.
Havia marceneiros, artífices, todos negros, escravos ou libertos.
Havia razões raciais, mas também razões econômicas.
A teoria do branqueamento foi uma desmobilização de um movimento nascente de trabalhadores brasileiros…”

10. Capitalismo

“Nós pagamos o preço.
O capitalismo foi tardio, o iluminismo não entrou em Portugal.
Dom João VI lutou para manter a monocultura e escravidão.
Portugal foi um país tão atrasado até o final da ditadura de Salazar.

Tinha latifúndios enormes.
Seguimos o modelo.
A grande questão de 1964, qual foi? A posse da terra…
O golpe não foi por causa do Jango, mas por causa da reforma agrária…”

11. As escolas

“Antes de Dom Pedro II não havia preocupação com escolas no Brasil.
A Constituição de 1824 falava do direito à educação, mas não houve organização nenhuma.
Enquanto isso, na Europa, com exceção de Portugal e Espanha, já entrava forte a ideia de alfabetização para todos.
Aqui não dava para fazer isso: constitucionalmente, os negros, indígenas, pobres e libertos não eram cidadãos.”

“As escolas profissionais eram para operários especializados, para técnicos agrícolas, professores, mas não era uma garantia de acesso à universidade.
Repete-se nesse momento a dicotomia do padroado.
A classe média incipiente começa a se mostrar no momento da urbanização, e se decide dar a ela o direito à escola profissional.

Mas o sistema de oportunidade é menor para os negros.
Essa desigualdade se torna um capital cultural, como mostra Bourdieu.
Foi igual com os índios – eram levados para exposições internacionais, mas eram invisíveis como pessoas.”

12. A cultura

“O nobre, o digno, o pensador, o cidadão…
Esses pensam, dirigem e comandam.
O servo e o bárbaro usam as mãos, fazem trabalho manual, que é algo maldito, um estigma, tanto quanto a cor.
Veja só a história do futebol…
O futebol só pegou na nobreza inglesa por uma razão: era jogado com os pés.”

“O Ozeil Moura [cônsul do Senegal] é um homem absolutamente negro.
Ele conta que quando ia para a Europa, nos voos da Air France, as aeromoças vinham falar com ele em francês.
Pedia que falassem em português.
Depois ouvia desculpas.

A naturalização é isso: para estar naquele voo, deveria ser de outra nacionalidade.
Ou ser um jogador de futebol.
Um negro pode ser também um artista, mas nunca um galã.
Quem sabe um comediante: Chocolate, Grande Otelo, Mansueto…“

“Orlando Silva, Orlando Dias, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga eram negros do rádio.
Tevê não.
Tínhamos grandes cantoras negras – Edith Veiga, Ângela Maria, Ademilde Fonseca.
Aracy de Almeida fez sucesso na tela, mas como jurada caricata do Sílvio Santos.”

Um afro abraço.
Claudia Vitalino.
Pesquisadora-Historiadora – ativista do movimento negro
Fonte: www.gazetadopovo.com.br/educacao/por-que-negros-foram-excluidos-do-ensino-nos-periodos-imperial-e-republicano-96aaka56heq7qxjdcyml7v7m6



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Claudia vitalino

UNEGRO-União de Negras e Negros Pela Igualdade -Pesquisadora-historiadora CEVENB RJ- Comissão estadual da Verdade da Escravidão Negra do Estado do Rio de Janeiro Comissão Estadual Pequena Africa. Email: claudiamzvittalino@hotmail.com / vitalinoclaudia59@gmail.com

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