INDIVIDUAÇÃO – UMA PROSPECÇÃO A NOVOS PARADIGMAS

INDIVIDUAÇÃO – UMA PROSPECÇÃO A NOVOS PARADIGMAS>> O processo de individuação, apesar de ser um conceito amplamente estudado, ainda se apresenta a nós como um caminho obscuro e carente de muita investigação.

Sugeriram-me que seria conveniente, para melhor compreensão, que eu relacionasse, em ordem, as proposições formulas aqui, pois isto acaba sendo, em si, um exemplo do caráter prospectivo que virei a mencionar.

Primeiro, farei algumas considerações teóricas relativas à individuação, seu significado e sua relação como conceito central na teoria Junguiana.

Depois, chamarei a atenção para o surgimento de novas perspectivas internas que representam uma realização das características pessoais, dentro de um posicionamento e uma ordenação no âmbito social e coletivo.

E, por último, relacionarei este processo interno, o qual chamamos de individuação, com estas novas perspectivas; ressaltando uma forma de relação no sentido de um objetivo a se alcançar, o que nos dará uma compreensão do caráter prospectivo da individuação.

Individuação significa fazer-se indivíduo

.Alcançar o máximo de sua individualidade, a qual podemos entender como a mais íntima e profunda expressão de nosso ser, com uma total compreensão, aceitação e permissão desta expressão.

E ainda reconhecer a ação de um material inconsciente sobre o eu.

Estas três atitudes citadas acima praticamente definem o termo de responsabilidade que deveríamos ter em relação ao nosso crescimento interno.

Isto seria reconhecer-se tal como se é, por natureza, e não como se gostaria de ser.

Quando nos referimos a um processo de transformação interna, este se relaciona à consciência e ao agrupamento de determinadas características psíquicas que, quando acontecem baseados na experiência, e também quando se reconhece a responsabilidade decorrente desta consciência, “resultará daí uma complementação do indivíduo, que deste modo se aproximará da totalidade, mas não da perfeição, que constitui um ideal…” (Jung, Obras Completas, 14/2, ¶ 283).

Individuação de modo algum poderia significar individualismo, que como todos os ‘ismos’ teria um sentido limitado, de identificação pessoal com uma ideia.

Uma unilateralidade, i.e., “uma atividade concentrada e dirigida da consciência, que acarretaria, deste modo, um risco de um considerável distanciamento do inconsciente” (Jung, O. C. 8, ¶ 139).

individuação é um processo bastante natural, espontâneo e autônomo

Ao contrário, individuação é um processo bastante natural, espontâneo e autônomo, ou seja, completamente independente de nossa vontade consciente, que ocorre em todos nós, não sendo privilégio daqueles que estão sob uma assistência terapêutica.

Por tudo isto, ela deve acontecer de maneira consciente e intencional.

Pois, desta forma “se evitarão todas as consequências desagradáveis que decorrem de uma individuação reprimida, isto é, se assumir de livre e espontânea vontade a inteireza, não será obrigado a sentir na carne que ela se realiza internamente contra sua vontade, ou seja, de forma negativa.

Isto significa que se alguém está disposto a descer um poço fundo, o melhor é entregar-se a esta tarefa adotando todas as medidas de precaução necessárias, do que arriscar-se a cair de costas pelo buraco abaixo” (Jung, O. C. 9/2, ¶ 125).

Esta maneira consciente e intencional constitui uma ampliação da autoimagem em direção à maturação e ao desapego, ou seja, a não identificação do ego com determinadas características psíquicas.

Quanto à assimilação e integração de tais conteúdos, podemos entender como uma agregação dos conteúdos psíquicos inconscientes e a própria consciência, na psique como um todo.

E não como uma identificação do ego com este material inconsciente autônomo.

Quando falamos de uma autonomia dos conteúdos do inconsciente, atribuímos a eles uma certa força, uma energia ou mana, que quando assimilada não se torna adjetivo do ego, e sim “vai parar numa instância que é consciente e inconsciente, ou então que não é nem uma coisa nem outra.

Esta instância é o ‘ponto central’ da personalidade, a meta, o ponto indescritível entre os opostos, o elemento unificador de ambos, o resultado do conflito, ou então o produto da tensão energética” (Jung, O. C. 7, ¶ 382).

A partir daí, “a meta seguinte da confrontação com o inconsciente é alcançar um estado onde os conteúdos do inconsciente não permaneçam como tais, e não continuem a exprimir-se como complexos autônomos, i.e., como fatores de perturbação que escapam ao controle da consciência, mas que se tornem uma função de relação com o inconsciente” (Jung, O. C. 7, ¶ 387).

Uma função psicológica e transcendente que resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes

No trabalho analítico que constitui uma confrontação dialética da consciência com o inconsciente, podemos dizer que tal crescimento é a direção tomada pela consciência, com a mais profunda seriedade, em concentrar-se no processo psíquico interior, em função de uma atividade máxima dos conteúdos inconscientes.

Esta ativação vai ocorrendo gradualmente em direção ao cerne de nosso ser, nos aprofundando, num sentido de maior compreensão, de maior aceitação do que antes era inconsciente e autônomo.

Através de toda esta dinâmica interna, vai-se atravessando camada por camada deste nosso substrato psíquico, encontrando representações cada vez mais sutis, menos pessoais, até chegarmos à essência, a primeira camada – o Self, arquétipo da totalidade, do equilíbrio e da unidade.

Esta trajetória em direção ao centro, poderíamos entender como a inclusão e o agrupamento de todas as possibilidades da psique, partindo de uma situação atual da alma, de uma realidade interna, para se encontrar a totalidade psíquica no homem.

Um caminho para o desenvolvimento e a regulação de si mesmo, para a ativação da função ética na forma de uma relação profunda, inteira e intencional.

Aqui nós nos deparamos com o aspecto prospectivo da individuação.

Uma natureza intencional do dinamismo psíquico para a autorrealização, para o equilíbrio.

Uma orientação mais voltada para fins ou propósitos do que causas.

Quando mencionei que as proposições formuladas aqui nesta apresentação seriam relacionadas em ordem, foi exatamente por causa de um certo impulso ou desejo que todos nós temos para perceber e almejar um objetivo.
Se eu começasse a falar sem determinar os meus objetivos, certamente faltaria um significado, por vocês não saberem o que eu queria com tudo isto.

A vida “…é teleológica (prospectiva) e determinada por um objetivo” (Jung, O. C. 8, ¶ 803).
E este objetivo é o sentido de tudo, é o estado de repouso, de equilíbrio.

A conquista de seu próprio centro

Diante desta situação, o caminho da individuação pode ser considerado como uma intenção séria para se prevenir um estado de desorientação no homem moderno, mediante a ativação de forças criadoras do inconsciente e de sua própria inclusão consciente na totalidade da psique.

E tais transformações só são eficazes quando ocorrem a um nível individual e quando se começa a perceber “a existência de conteúdos como pertencentes à personalidade do eu, devendo ser atribuídos a um não ego psíquico.
Esta operação deve ser empreendida toda vez que se queira evitar a ameaça de uma inflação” (O. C. 12, ¶ 563).

Desta forma a relação da consciência com o inconsciente não deveria jamais passar por identificações com os conteúdos autônomos, o que caracterizaria um estado de possessão do inconsciente, ou seja, um estado de consciência onde se perde todo poder de discriminação, se expondo a calamidades ou a situações desagradáveis.
A identificação com tais fontes arquetípicas, geradoras de uma angústia profunda, definiria com muita precisão os sintomas da neurose geral de nosso tempo.

Quando todos os valores são muito questionáveis, nos voltamos para novos modelos mais seguros, novos paradigmas, novo esquemas para melhor compreensão e explicação de certos aspectos da realidade.
“Tais modelos úteis, paradigmas ou arquétipos podem ser considerados como remédios para os homens e os tempos.” (Jung, O. C. 12, ¶ 564).

Mas só quando propostos a um nível individual, e não como um modelo proposto às massas.

Mudanças de paradigmas não podem ser impostas pelo sistema

O significado de tais mudanças, enquanto não for descoberto através da experiência direta, torna-se apenas uma possibilidade teórica, e não real.

“A individuação trata de processos vitais, através dos quais a personalidade em formação atinge o seu centro no inconsciente, e que, por seu caráter numinoso, serviram desde os primórdios de estímulo fundamental para a formação de símbolos.” (Jung, O. C. 12, ¶ 564).

Existe uma analogia histórica e espiritual com relação às religiões de mistérios e os rituais iniciáticos que surgiram ao longo dos tempos.

As diversas vias de iniciação religiosa dos primitivos são igualmente um exemplo disto, como também as práticas budistas de meditação e os exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola.

Quando procuramos comparações ou equivalências dos conteúdos inconscientes, com tais práticas, devemos ter como referencial os próprios conteúdos, e não as práticas.

“Não se trata de saber se os símbolos de iniciação representam ou não verdades objetivas, mas sim de saber se tais conteúdos inconscientes são ou não equivalentes a tais práticas de iniciação e se têm ou não uma influência sobre a psique humana.” (Jung, O. C. 7, ¶ 385).

Somente nos traços fundamentais tais práticas se assemelham ao conceito de individuação de Jung, pois para ele individuação trata de processos vitais e designa um trabalho na psique como uma preparação do caminho para se alcançar o centro, o qual “viria a ser uma consequência e não o conteúdo da preparação do caminho.” (Jacobi, J., 1976) .

Isto quer dizer que não se deve ter uma preocupação com o “atingir o centro” , que seria uma consequência natural, à medida que nos preparamos de maneira íntegra e intencional para trilhar o caminho.

Seria o mesmo que dizer que, diante de uma infinitude de possibilidades que se apresenta a cada momento, deve existir uma integridade em cada passo que se dá.

Não existe um caminho lá para ser visto antes, e nos dar segurança, e um sujeito aqui que dá um passo a partir do caminho visto.

Mas, uma situação onde não houvesse divisões, onde não se visse o caminho como uma ameaça, um adversário. Uma coisa oposta, separada e distante de nós mesmos.

Um outro paralelo bastante instrutivo que Jung evidenciou em suas últimas investigações foi sob o ponto de vista da alquimia.
Onde, por divisão ou destilação, e através de repetidas combinações sempre renovadas, se obtém o corpo sutil, a ressurreição do corpo, o ouro filosófico.

Enquanto o alquimista vive e representa a transformação da psique no processo alquímico, todos nós o fazemos em nosso cotidiano, procurando a liberação de nossa alma, ou, por assim dizer, alcançar um “estado de encontrar-se desligado dos objetos”, o qual o hindu chama de Nirvana, termos que significa, livre de contrários.

Enfim, poderíamos falar de símbolos alquímicos, símbolos orientais, mitológicos, símbolos verbais ou pessoais para expressarmos exatamente a mesma coisa.

Cada um destes sistemas simbólicos representa simplesmente uma nova forma, a partir de uma perspectiva diferente, que surge para se perceber um determinado conteúdo autônomo de nossa realidade interna.

E quando tocamos nestes conteúdos, causadores de conflitos, a cada momento eles surgem com uma roupagem diferente.

E a cada contato vamos tomando consciência de um novo aspecto deles, como também vamos aprendendo a reconhecer cada uma de suas características.

E individuação passa exatamente por aí. No surgimento e na vivência de novos paradigmas, que nos proporcionam maior consciência de nós mesmos.

Um paradigma é simplesmente uma nova forma para se compreender e explicar certos aspectos da realidade.
A partir do momento em que um conteúdo inconsciente emerge na consciência, passa-se a experimentá-lo de maneira pessoal, relativa à sua realidade interna.

E quando se entra em contato com um determinado conteúdo, uma constelação de várias outras possibilidades de visão ou entendimentos também começa a surgir.

E à medida que nos dispomos integra e intencionalmente a nos relacionar com estes conteúdos, com estes símbolos, passamos a permitir a criação ou o surgimento de novas perspectivas, de novos paradigmas que vão se formando.
E que por sua vez serão vividos como a realidade.

Cada um a seu momento, até conseguirmos assimilar e agrupar uma determinada quantidade de novas percepções que possibilitariam a compreensão total daquele conteúdo, o seu significado.

Como todo conceito de totalidade envolve todas as formas existentes, conscientes ou não, daquele conteúdo, seria humanamente impossível esgotarmos todas as possibilidades contidas nele.

Mas quando se consegue viver e agrupar um determinado número destas perspectivas, tem-se a compreensão total daquela representação.

E todas as outras novas formas que eventualmente surgissem em relação àquele conteúdo, seriam imediatamente aceitas e assimiladas como algo já conhecido, por já existir internamente uma compreensão daquele agrupamento de símbolos.

Isto significaria um retorna àquele estado onde as coisas fazem sentido, a uma aceitação daquilo que é, pelo que é.

Uma resolução da neurose moderna

Tudo isto que foi mencionado até agora tem relação com um e apenas um conteúdo psíquico, mas representa o mesmo padrão em relação à totalidade em seu sentido mais amplo.

O que acontece com um, acontece com o todo.

Nosso desenvolvimento pessoal cria ou permite o surgimento de determinados paradigmas que se repetem no coletivo, i.e., no círculo fechado de amigos, na comunidade, na nação inteira.

No homem em um determinado tempo cíclico, e na totalidade em sua mais ampla concepção.

Logo, à medida que este processo interno de transformação ocorre em relação a vários conteúdos inconscientes, chegaríamos a uma compreensão que nos daria a visão de todo aquele momento.

Paradigmas que surgem e são experienciados como novos e fascinantes, mas que, se ampliássemos mais uma vez a nossa visão, estariam apenas repetindo uma descontinuidade contínua e prevista, que coloca o novo no lugar do velho.

Ou o que há de mais verdadeiro, em um lugar questionável

Mas mesmo com esta sensação de algo já vivido, sempre encaramos o novo como algo jamais visto, e sobre o qual devemos sempre adotar uma forma íntegra e honesta de relacionamento.

Vivenciando tudo o que se refere ao nosso interno como uma realidade efetiva e psicológica, com o mesmo caráter de realidade análogo ao do mundo externo.

Quando falamos de novos paradigmas, ou de novas perspectivas para se observar os fatos, deveríamos também nos ocupar em saber como tais coisas acontecem.

Tais percepções surgem a partir de influências de ideias arquetípicas que se constelam diante de nós.

Estes conceitos arquetípicos, que nos atendem a partir de nossa própria realidade interna, nos provocam um fascínio em relação à grande realidade descoberta.

E nos fazem desistir de procurar outras explicações mais completas naquele instante.

Deste modo vivenciamos a única realidade presente.

Quando esta se apresenta a nós sob a aparência de uma grande realidade descoberta, nós nos relacionamos com ela com uma espécie de convicção sagrada, mas que depois de experienciada e aprofundada, revela-se como um ponto de vista muito tendencioso e parcialmente errôneo.

Podemos sempre levantar a suspeita psicológica de que estávamos sob a influência secreta de um arquétipo.
E este fascínio só é quebrado quando começa a surgir um novo desejo, ou uma nova realidade interna, que irá nos criar dúvidas em relação ao que existia.

Assim, novo fatos começam a se tornar visíveis, num agrupamento que se vislumbra diante de nós como uma nova realidade – um novo paradigma, que será novamente experienciado como a novidade mais verdadeira de todas, um aspecto jamais pensado e desconhecido até então.

E é assim que atuamos.

A cada momento é criada uma realidade que será o prisma através do qual nos relacionamos com o mundo.
Até mesmo esta minha apresentação é apenas mais uma visão que passa por uma faceta deste grande prisma arquetípico.

Individuação não é um método, não é um caminho

Ela está presente na preparação deste caminho, na honestidade de nossa relação com o interno, à medida que nos apresentamos.

Está na integridade em cada passo que se dá.

No ato de fé mencionado pelas Runas, quando se dá um salto no Grande Vazio.

Está na retidão das ações presente nos Cavaleiros da Távola Redonda em cada aventura empreendida.

Individuar-se é ser um com o todo, consigo mesmo.

É não existir lá, não existir divisões.

É não existir o outro, é não ver o caminho fora de si mesmo.

É ser um com o caminho.

Só assim o caminho existirá sob os seus pés.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SAMUELS, A., et al., Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro.:Imago Ed.1988.

*1. Sérgio Pereira Alves é Psicólogo Clínico Junguiano atuando na sua clínica particular em Belo Horizonte. Autor de vários artigos publicados em jornais e revistas especializadas. Professor Assistente da Faculdade de Ciências Humanas- FUMEC e Professor Convidado de eventuais cursos optativos da PUC/MINAS em Psicologia Analítica.




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