PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO V

PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO V
Armando Nascimento Rosa

Fascinado pela cosmovisão pagã, pois não raro afirmava que Cristo é simplesmente o deus que faltava no panteão. Pessoa reflecte na sua obra os propósitos e a tenacidade do filósofo hermético. Embora tal máscara não se ajuste inteiramente ao seu rosto. O qual estava aturdido pela percepção do nada absoluto e da mentira universal como verdade do mundo sem mistério dentro. Mesmo assim, a alquimia operada na criação poética – tal como o veria Artaud em relação à criação teatral -, que casa o animus e a anima do sujeito numa internalização transformativa do tempo existencial.

Esta é prefigurada por Pessoa dentro do mais moderado dos gnosticismos, que tem em Hermes Trimegisto o seu lendário patrono.

Medite-se nesta cabalística anotação. Visto que, por estar em francês – idioma com o qual Pessoa mantinha uma ligação cultural distanciada -, põe a hipótese de ser uma apropriação transcrita. Ou uma reflexão desencadeada por um dos muitos fólios do género que o autor consultou – este, presumivelmente, nessa língua. Portanto é o magistério de um Hermes hebraizado que aqui lemos. Confiante em devolver ao humano a superior condição que era sua antes da Queda.
Esta magia é possível se se reencontrar a Palavra hermafrodita, religante e perdida, anterior ao tempo da História. Essa visão que é singular mitopeia da criação literária. Dado que sagra o poeta-alquimista com a missão de prover a reintegração – hermetista e hermenêutica – do humano na sua antiga, nobre e esquecida ontogenése.

«L’homme n’était pas destiné à être ce qu’il est: il n’est devenu tel que par la Chute. Retrouver la Parole c’est retrouver la vraie Loi Humaine, l’Adam primitif et androgyne, fait ainsi à l’image de Elohim. Faire en soi même le mariage des deux principes – c’est là la Loi Humaine retrouvée, la vraie création de la pierre philosophale.» 30

Apóstolo do frenesi da diversidade imanente, Álvaro de Campos, na sua totalizante ambição de cantar em um só tempo tudo o que habita no espaço,

Bem pode ser lido como uma tradução literária da sentença hermética do Pimandro. A qual afirma que o que está em cima é como o que está em baixo. Assim como o que está em baixo é como o que está em cima. Possivelmente um dos mais longos investimentos poéticos de Pessoa neste heterónimo é A Passagem das Horas. Porque tem na sua estrofe inaugural o propósito programático de ser e viver a simultaneidade absoluta.
E repare-se como o próprio título A Passagem das Horas manifesta um antagonismo de contornos perenes. Isto é o desejo do humano afrontar o domínio que o tempo exerce sobre aquilo que ele é. Ao fabricar maquinismos que possibilitam a sua medição, ou seja, pretendendo atenuar a sua estranheza ao dividi-lo matematicamente. Visto que atribui-lhe unidades mensuráveis. Pois só a partir da construção do relógio pendular, proporcionada pela física galilaica, passámos a poder avaliar com apreciável precisão a inexorável passagem das horas.

«Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo.
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.» 31

A euforia epidérmica e neurótica de Campos mascara a natureza ultra-depressiva do seu júbilo face a uma hipotética unidade do ser.

No qual o mundo físico, natural e artificial comungariam em apoteose cosmopolita num só tempo. Tanto cerebral quanto afectivo, Campos sente-se garrotado em clausura na esfera material regida pelo demiurgo. Nesse caso a metafísica o libertaria, como um cósmico buraco de verme, da passagem metronómica das horas. Mas não chega a ser escape para Campos avistar as paragens do Deus estrangeiro ao mundo. Essa metafísica desconjunta-se. Também não possui mais ser do que os célebres chocolates da não menos célebre pequena suja. Aquela que os devora em Tabacaria. Apenas o tempo estático e paradisíaco da infância é obsessão transfigurada que redime e purifica. Como se nele a intacta febre animal dos instintos se cruzasse com uma hierofania assexuada.
Em Caeiro, por exemplo, o fechamento na natureza emoldurada não é disfórico, mas ironicamente prazeroso. Pois pensar é estar doente dos olhos. Visto que nãoo se quebra essa concórdia ilusória com a entrada em cena de um travesso Jesus-menino, patrono herético no altar íntimo do poeta-pastor.

Também Yvette Centeno nos persuadiu para a recorrente significância do tempo infantil

Na obra daquele que afirmou, sem subentender lugar-comum, serem as crianças o melhor do mundo. Escreve a autora, no ensaio seu A Água e a Morte na Obra de Fernando Pessoa, que

«a ideia de ser criança é muito cara ao poeta. Por um lado liga-se ao único tempo em que terá sido feliz, por outro lado liga-se à ideia que ele tem de que na criança não se põe o problema de uma sexualidade definida e assumida, de que na criança não existe o desejo. Nos poemas juvenis de Alexander Search podemos já encontrar o seu horror do sexo e a conotação do sexo com o mal. Em Regret, imagina-se criança junto doutras crianças, sem ter sexo, sem sentir amor.» 32

Retomemos então as duas limitações da humana condição retratadas no hermético Pimandro, e observemos o modo de Pessoa lidar com elas.

Quanto ao sono – que para ele é, muito gnosticamente, a essência mesma desta vida -, deseja o escritor neutralizar a sua acção. Nesse caso por intermédio de uma actividade reflexiva ciclópica, que o devir do verbo transmuta. Mesmo que o temporário abraço de hypnos seja a metonímia existencial de um nada fatal que seduz e apavora o poeta. No que respeita a eros, esse ático deus que chama a si o incêndio do amor e da sexualidade. Por isso, ele surge, como é sabido, violentamente recalcado, nostalgicamente morto, ou absurdamente não sentido pelo sujeito poético. E Irrompe, ora em abstracto e improvável devanear fugaz, ora em fúria catártica sob as formas da negatividade auto e hetero-destrutivas. Ou seja, entre o masoquismo histérico e a misoginia sádica.

Como vários estudiosos já o ajuizaram, Pessoa irrealizou o devir erótico em qualquer das máscaras que segrega

Incluindo a biográfica. E é numa androginia neutra e procurada que ele se revê como criança triste em quem a vida bateu. Nele o tempo da infância não constitui somente o lugar fétiche, sempre reinventado, no qual o sujeito poético saudosamente se extasia. Mas ele é metáfora de um paraíso perdido, paragem no tempo que resgata a hora absurda. Um infeliz porque consciente, da adultez do poeta.

A infância é o simulacro possível da androginia, melhor dizendo, da negação dela.

No universo biológico sexuado a que o humano pertence. Também para Nietzsche era a criança a figura forte da potencialidade criadora, do tempo por realizar. Pessoa elege-a como o andrógino hermético por defeito. No período de vida orgânica anterior à diferenciação dos princípios que a natureza determina para a reprodução.
A infância seria também um tempo ainda embrionário da futura personalidade vivente (e padecente) na qual se pressentiriam auxílios.
Os quais cessarão depois – de esferas mais perfeitas do ser. Nesse caso representadas por esses espíritos-guias que Bernardo Soares vê, magoadamente, afastarem-se da criança que fomos. À medida que se aprofunda a incarnação individual da centelha na caminhada, então solitariamente terrena, em direcção à adultez. E a referência ao cevado como escatológico destino do animal humano. Essa é a mesma que Beckett fará numa das respostas lacónicas e aceradas dadas por Willie a Winnie, em Dias Felizes.

«Sim, julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que somos acompanhados na infância por um espírito da guarda, que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois, talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso destino.» 33

E em alguns outros parágrafos de Bernardo Soares, datados de 1931, a perda da infância mistura o luto freudiano com a angústia gnóstica.

Que entende o massacre do tempo como o sentido profundo e trágico do mundo imanente. Mas, numa outra dimensão, figurada no texto pelo andar lá de cima. Os pitagóricos sons simbólicos de um piano tocado por uma menina de outrora alegorizam a reminiscência de uma outra realidade. A qual seria anónima e longínqua, que se não confunde na memória individual com o caos da mutabilidade.

«Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que, por processos de infiltração que desconheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes.

(…)

Não choro a perda da minha infância; choro que tudo, e nele a ( minha ) infância, se perca. É a fuga abstracta do tempo, não a fuga concreta do tempo que é meu. Que me dói no cérebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das escalas do piano lá de cima, terrivelmente anónimo e longínquo. É todo o mistério de que nada dura que martela repetidamente coisas que não chegam a ser música. Mas são saudade, no fundo absurdo da minha recordação.» 34

continua



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