Leonora aos 70 anos
Leonora aos 70 anos>> Antes de tudo devo dizer que, quando se conta para mulheres, há que ser ficcionista em alguns pontos.
Pois, que a natureza feminina assim o exige. Resolvi contar singelamente um acontecimento pela ótica romanesca de uma matrona de seus setenta anos.
Seu coração rubro bate forte como não faz há muitos anos.
Leonora aos 70 anos e seu perfil
Veste-se com rigor e com requinte um vestido da alta costura, clássico, de cor verde forte.
Acompanhada de sua filha mais nova, que lhe arruma os cabelos, apanhando-os em gracioso coque preso por um antigo e sofisticado pente.
Inegavelmente uma joia de família, confeccionado com pequenos e reluzentes brilhantes. Foi presente de seu bisavô para sua bisavó pelo menos dois séculos atrás.
-Mamacita, vamos pintar seus olhos?
-Não tenho idade para maquiar os olhos, querida.
-Que bobagem é essa? Estamos no século XXI, podemos tudo.
-Não sei. Não sei.
-Deixe comigo, ficará maravilhosa.
Leonora deixou-se maquiar.
Leonora aos 70 anos e o encontro
Simplesmente fechou os olhos e sonhou acordada, com o encontro que teria logo mais.
Surpreendentemente, voltou no tempo, viu-se adentrando na famosa leiteria às dezoito horas de uma quente terça feira.
Num canto do estabelecimento, sentado à mesa, elegante, estava ele.
Enquanto seguia o garçom até a mesa, observava de soslaio o homem.
Certamente tinha posses, porque o terno cinza claro, muito bem cortado isto demonstrava, e a suposta indiferença com o ambiente lhe tornava muito interessante.
Ao mesmo tempo os óculos de aro fino, prateado, lhe conferia um ar de inteligência.
Seus cabelos fartos e louros caiam-lhe no rosto suavemente, eram compridos para a época, mas estavam encantadores, levemente encaracolados.
Fumando prazerosamente um charuto cubano, não a viu se aproximar.
Enquanto a fumaça se espalhava vagarosa pelo ar, seus olhos claros percorriam o salão de ponta a ponta, pousando por alguns segundos sobre a silhueta, de algumas mulheres glamorosas, que frequentavam como ela própria, aquele lugar social.
Não se fixava em nenhuma e retornava sua atenção ao copo de whisky à sua frente e os olhos deitavam-se sobre as letras do jornal.
Leonora aos 70 anos e os cuidados de sua filha
Abriu os olhos repentinamente e ouviu a reclamação da filha.
-Mamacita, quase me fez borrar seu rosto com o lápis de olho.
-Olhe-se agora e diga se não está lindíssima!
A mulher mira-se no grande espelho e não encontra a beleza dita pela amorosa filha.
Seus olhos estão bonitos não pode negar, pois são grandes e escuros e o contorno bem feito pelo lápis, lhe dá certo mistério no olhar.
Mas a face macilenta sem viço e sem força, não esconde o passar das décadas, e os lábios denunciam, as frases sufocadas, nunca pronunciadas, as juras, as ofensas.
Um suspiro profundo e longo guarda as mágoas apertadas dentro de seu largo peito, neste momento adornado por rico colar de pérolas.
Leonora aos 70 anos e o medo do encontro
Depois de fitar seu reflexo e examinar os detalhes, resolve que não vai ao encontro.
-Não vou.
-Ah! Vai sim. Não vai deixá-lo esperando mais uma vez. Vai nem que seja amarrada.
Afinal ele veio de longe para vê-la, você bem sabe que a Alemanha é do outro lado do oceano; não será justo não comparecer novamente.
Já fez isso antes, Mamacita, há quase vinte e cinco anos. Por favor, faça um esforço, por mim.
Eu vou fazer de conta que não sei que anteriormente, há cinquenta anos ou mais você voltou correndo para casa, estando quase ao lado dele no meio da leiteria, só porque ele sorriu para outra mulher.
-Você não entenderia minha filha. Nunca entenderia.
-Nem quero Mamacita, nem quero.
Leonora aos 70 anos e a espera de 50 anos
Se eu tivesse um amor que me esperasse meia hora que fosse, eu correria para os seus braços e não largava nunca mais, no entanto, você tem um homem que a espera por cinquenta anos e fica fazendo doce.
Realmente nunca vou entender sua atitude.
Nesse meio tempo o telefone toca.
Alguém atende, não se ouve a conversa, mas ouve-se os passos em direção ao quarto onde estão as mulheres.
Um leve bater na porta e entra uma mulher também de meia idade com uniforme de copeira.
-Senhora Leonora, ligou o motorista do senhor Helmut.
Com a finalidade de avisar que estão no portão da casa, seu patrão preferiu não correr o risco de não a encontrar, ou que a senhora faltasse ao encontro.
Leonora se vira para a jovem com olhar desesperado, essa por sua vez sorri largamente e bate palmas, dizendo.
-Que maravilha, esse é dos meus. Mamacita não conseguirá fugir desta vez.
A copeira entrou e pegou junto da poltrona uma bengala de apoio
Com efeito uma peça de refinado acabamento, e entregou para Leonora, que amparada pela filha, seguiu para a sala de visitas, deixando antever sua paralisia na perna esquerda.
Temerosa, andava suavemente e tremia.
Enquanto andavam devagar a senhora falava baixinho.
-O que será que ele está esperando?
Ficará por certo decepcionado com meu defeito.
A moça com ar de reprovação diz que ele não se importará.
Mesmo que nunca tenham se visto depois, deve ter conhecimento do fato.
E foi ligeira abrir a porta, pois a campainha estava tocando, já pela segunda vez.
-Vim ver sua mãe, assim ela não poderá faltar ao encontro. Trouxe um champanhe e flores para tentar convencê-la a me receber.
Falou o homem demonstrando certo nervosismo.
Leonora aos 70 anos e o encontro
Adentra pela sala um ancião, de mais de oitenta anos, com muitos quilos além do que deveria ter; totalmente sem cabelos em sua cabeça que reluz, seus passos são lentos e inseguros.
A filha de Leonora fica observando o encontro e pensa consigo mesma.
(Mamacita não imaginou que ele pudesse ter envelhecido também)
Frente à frente, os enamorados, se dão as mãos em cumprimento.
Aos olhos de Helmut a mulher idosa lhe causa um impacto bom, pois nem sequer havia pensado que mesmo os anos tendo passado para ambos, ela pudesse ficar tão bonita, elegante e do mesmo jeito que antes, cismada.
Por outro lado, Leonora, admirou de como ele estava envelhecido e fora do peso.
Sem dúvida sentiu alívio, e olhou de relance para a filha, dando uma piscadela quase imperceptível.
Sentaram-se na sala luxuosa, e trocaram palavras sobre assuntos corriqueiros.
Enquanto na sala contígua a filha ouvia e se impacientava com a demora em se entenderem de vez.
Pensou: Como os velhos são lentos, não me conformo.
A copeira chega próxima e lhe tira dos pensamentos.
-Como estão indo?
-Nunca vi tanta polidez, chega a me dar nos nervos.
-São de outra época, onde não se falava abertamente o que ia na alma.
Além do que já pensou como ambos estão assustados com seus aspectos?
Eu se fosse ela já teria dado por encerrado o encontro, pois ele não é nem sombra do homem da fotografia que ela guarda à sete chaves.
-Não acredito que você seria tão insensível, afinal ela também não aparenta ser uma jovenzinha mais, tem suas mazelas e sabe que a bengala é um peso à mais.
As mulheres ficaram entretidas na conversa, e por alguns minutos esqueceram o casal
Foi quando Leonora chamou a governanta e quando esta se apresentou na sala ouviu o seguinte pedido:
-Querida, Helmut almoçara conosco.
Por favor cuide para que ele seja bem servido; enquanto isto nos servir um porto.
Estamos a relembrar nossos dias de juventude, e por certo os anos que não tivemos contato algum, nos tomará tempo para que contemos tudo que vivemos.
-Pois não madame, prepararei tudo para que se sinta confortável, deseja os senhores algo mais?
Foi a vez de Helmut falar:
-Seria pedir muito, poder fumar um charuto aqui em sua sala, hoje em dia é totalmente incorreto tal ato, eu sei, mas arrisco o pedido.
Sorriu meio sem graça e Leonora entendeu que ele queria relaxar e liberou, mas ordenou que seria somente esta vez, ele concordou e se fartou.
Disse quase como a desculpar-se:
-Faz muitos aos que não aprecio um charuto, mas deu-me uma vontade irresistível agora.
-Também gostaria de experimentar, se não se importar de me ofertar um.
-Meu Deus agora resolveram fumar, não acredito nisto.
A copeira foi correndo contar para a filha de Leonora, como o dois estavam queimando as etapas
Mas ela estava com o ouvido encostado na parede e ouvira tudo.
As duas riram muito em imaginar Leonora fumando um charuto, e de repente se olharam, pois, o perfume do fumo começava a se espalhar pela casa.
-Leonora, em que ano foi que lhe vi pela primeira vez na leiteria?
-1910, dia 25 de fevereiro, me lembro bem, eu contava vinte e três anos.
Eu sonhava mais que vivia a realidade, fui muito inocente em achar que o mundo se curvaria à minha vontade, e o que aprendi a duras penas é que eu sou quem se curva ao mundo.
-Concordo consigo sobre quem se dobra, mas em alguns casos você não se dobrou nunca, nunca deu possibilidade de explicações.
-Pode começar a se explicar agora mesmo, se for de fato importante, eu saberei compreender.
Helmut achou que Leonora não falava sério e começou a rir e ela o seguiu dando conta de que estava agindo como a moça de antes, cheia de direitos.
Leonora aos 70 anos e seus encontros com Helmut
Assim os dois se entenderam, e passou a ser prática comum, eles se encontrarem uma vez na semana para conversarem e principalmente ouvirem música juntos, até cantavam e dançavam na grande sala da casa de Leonora.
Helmut explicara que voltou a morar no Brasil, pois sabia dentro de si que horas agradáveis lhe aguardavam e não houve parente que o segurasse na Alemanha.
A filha respirava profundo desejando encontrar em sua vida algum companheiro pelo menos parecido.
E já havia tirado as ações ligeiras do dia em que maquiara sua mãe para o encontro.
Com o tempo foi compreendendo que o que vale é a demora em viver cada passagem, a demora é que mostra nuances diferentes, mostra cores escondidas nas penumbras.
Cheiros diferentes também compõem a demora, e sons, quantos são os sons que não ouvimos quando estamos correndo dentro da realidade da vida.
A copeira requintou o cardápio e comprou novos vinhos, novos licores e até um pôster da leiteria que existiu no começo do século XX no Rio de Janeiro.
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