Alma de mulher
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Adana voltava para casa depois de um dia de trabalho. Seus pés doíam, pois nas sextas feiras subia as escadas limpando degrau por degrau.
Então ao chegar ao trigésimo e último toda a escada devia estar maravilhosamente limpa, o mármore necessitava de cuidados especiais. Por isso somente ela fazia esse trabalho. Sua patroa tinha confiança no seu trabalho, pois foi muito bem recomendada por sua sogra. Adana trabalhou para a sogra de Sândi por muitos anos. Assim quando seu filho se casou, a enviou para a casa nova juntamente com o enxoval dele.
Com esta família, Adana ela já estava há vinte e quatro anos. Assim vinha ela pensando pelo caminho em sua bicicleta. Pela estrada poeirenta que levava do bairro rico até sua casa em um bairro pobre e afastado.
Pensava consigo mesma, que estava beirando os cinquenta anos e sempre trabalhara para essa família. Enquanto suas amigas tinham rumado para lugares diferentes, arriscado mais. Ela ficara fincada naquele trabalho ingrato, onde o ganho dava mal e mal para sobreviver.
Alma de mulher – A família e o trabalho de Adana
Casara-se e tinha dois filhos. Dois rapazes que muitos trabalhos deram durante a juventude. Mas hoje tudo estava calmo.
O mais velho estava trabalhando no mar, em um navio de cruzeiros e visitava os pais uma vez por ano.
O mais novo depois de muito bater cabeça, encontrou na religião um refúgio. E vivia assim encoberto pelos salmos e hinos da igreja pentecostal à qual pertencia.
O trajeto entre a casa dos patrões e sua residência era de mais ou menos cinco quilômetros. E ela fazia em quarenta e cinco minutos pela manhã. Mas à tardinha quase noite ela demorava quase uma hora, o peso do dia fazia suas magras pernas pedalarem com menos potência.
Chegando, em casa, um banho frio a transformava. Sentia-se bem e disposta.
Alma de mulher – A artesã Adana
Cuidava da janta e procurava fazer uma comida bonita e cheirosa, sem nunca se esquecer que precisava também ser saborosa e nutritiva. Enquanto as panelas ficavam aquecidas sobre o fogão de ferro. Ela se sentava em uma cadeira de balanço e tecia com barbantes.
Peças trançadas feitas com os fios que pendiam de uma tábua de madeira. Sobre a madeira ela dobrado um tecido grosso para dar maciez a superfície onde deveria trançar os fios.
Recebia encomendas de toalhas de mesa, de colchas e cortinas. Era rápida no trançar e logo se via um desenho surgir do emaranhado de pontas. Enquanto tecia cantava baixinho, possuindo uma voz melodiosa e afinada, gostava de cantar os lamentos de sua terra, quente e sofrida.
Essa era a rotina de Adana depois que chegava do trabalho. Todos os dias enquanto esperava seu marido chegar do trabalho. Quando Malanda chegava, ela esperava ele se banhar e iam jantar, conversando sobre como transcorreu o dia de cada um.
Alma de mulher – Um casal diferente
Malanda não vinha de bicicleta ele era motorista de uma empresa de construção. Por isso depois que deixava o engenheiro em casa podia seguir com a caminhonete para casa. Ele era mais novo que Adana sete anos.
Eles formavam um par intrigante. Os amigos gostavam de conversar com eles, pois eram pessoas de muita alegria, nunca percebiam neles traços de tristezas ou de sofrimentos.
Eram prestativos com os conhecidos tanto quanto com os desconhecidos, sem preconceitos tratavam todos igualmente.
Os mais velhos diziam que eram almas velhas, que em vidas passadas tiveram muito poder.
Nenhum deles ligava para essas conversas. Mas quem lhes observasse os modos entenderia que eram diferentes. Pois viviam em um mundo que não entendia aquela forma polida de ser.
Adana, negra e fina, de estatura mediana, parecia uma bailarina, tinha músculos internos bem delineados, consequência do seu trabalho doméstico. Desde menina era doméstica, executava todos os trabalhos da casa, e sabe-se que são trabalhos braçais no mais das vezes.
Usava cabelo quase raspado, sua cabeça era linda, sem nódulos ou curvas, lisa inteira, com proporcional rosto, nariz, olhos e boca. Assim a cabeça a mostra lhe valorizava e diminuía muito sua idade verdadeira.
Seus olhos castanhos, sempre delineados, mostrava uma força persuasiva que ela só usava em casos extremos. No dia a dia seus olhos eram comuns, e as vezes não eram lembrados. Sua cabeça era seu principal atrativo, pelo menos para as pessoas que a via pela primeira vez.
Gostava de roupas tribais, com muito vermelho, amarelo e azulão. Era uma personalidade exótica. Quem a visse em sua bicicleta escorregando levemente pela avenida não diria que era uma pobre mulher suburbana indo ou vindo do trabalho. Diria sim que era uma turista se divertindo naquela cidade violenta e triste.
Alma de mulher – O misterioso Malanda
Malanda era alto e forte; músculos delineados que ele mantinha, desde quando precisou obtê-los para sobreviver. Tempos ruins que ele preferia não lembrar.
Gostava de se vestir de branco, deixava a camisa aberta até a altura do peito, para amenizar o calor e para ser apreciado. Falava só o necessário, e sua palavra era sensata, procurando o lado bom de toda situação. Mesmo nas situações onde parecia que nada tinha de bom ele encontrava um ponto para dar valor.
Tinha seus cabelos encaracolados o que demonstrava que não era puro, e sim um mestiço. Embora sua pele fosse reluzentemente negra, seus cabelos traziam caracóis e brilho azulados. Seus olhos grandes e cinzas penetravam as pessoas como lâminas.
Lia a alma de quem se aproximasse, mas permanecia calado sobre o que via. Numa noite quente e num evento político ao qual foi obrigado a comparecer. Pois como motorista levava pessoas importantes aos lugares que queriam ou precisassem, conheceu Adana. Leu sua alma, e aproximou suas vidas. Desde esse tempo que está beirando os vinte anos, vivem juntos, num aprendizado incompreendido pela maioria das pessoas.
Adana estava vivendo um momento difícil em sua vida, quando conheceu Malanda. Não ligou para ele, naquela noite ela servia no coquetel, para seu patrão. E sua mente e coração estavam angustiados. Naquela semana Adana recebera informação de sua segunda gravidez. Tudo que ela não podia ter nesse momento de sua vida. O marido estava preso, fora considerado subversivo pelo governo e ela era vigiada também.
Alma de mulher – Momento difícil de Adana
Seu primeiro filho estava com quatro anos e vivia com sua mãe. O marido, ela sabia, estava condenado.
Foi com esse estado de ânimo que serviu um chá gelado para Malanda, na copa da casa de seus patrões. Serviu simplesmente, mecanicamente, como fazia sempre. Não viu a quem serviu. Mas Malanda viu perfeitamente quem lhe servira. E reconheceu nela uma alma ligada à sua.
Ele a acompanhou com os olhos pelo resto do tempo que durou o evento. Que nesse dia exato foi até de madrugada. Os políticos estavam exaltados para dar exemplo, queriam mostrar ao povo ignaro quem é que mandava. Toda essa conversa afligia Adana. Procurava não ouvir, cumprir sua obrigação, friamente, para não correr o risco de perder o controle sendo presa ali mesmo.
A ideia de mais uma criança lhe dava calafrios. Pensava no pequeno que estava com sua mãe, em quantos dias ficava sem vê-lo. Parecia que ela estava em um carrossel de horrores.
Malanda colocou-se na varanda em meio a grande vaso florido que beirava uma janela grande que permanecia aberta. E lá de seu posto de observação, acompanhava todos os movimentos da moça, que trazia no rosto um grande sofrimento. Ele, enquanto olhava, deixou sua memória vir à tona e relembrou.
Alma de mulher – Malanda sonha acordado
Grande tenda armada no deserto.
Malanda, um músico tocava o tambor juntamente com mais meia dúzia de outros companheiros. E no meio da roda, rodopiava Aisha, com sua grossa trança que volitava no ar. Seu porte de rainha dominava o ambiente e os olhos do musico não desviavam de sua escultural beleza.
Ao mesmo tempo a admiração beirava idolatria e medo. Tentava impedir a todo custo tornar seu sentimento impuro. Pois somente a pureza poderia fazer com que ela lhe olhasse como ele gostaria de ser olhado por ela.
Mas Aisha, terminava sua dança encantada e sumia no meio da noite. O breu lhe roubava. Assim Takamat ficava na solidão da noite a lembrar da máscara pintada no rosto de Aisha, para aquela ocasião especial. Especialmente para o aniversário de morte da rainha Tin-Hinan.
Respira profundamente e volta o pensamento à varanda. Comparando a leveza de Aisha e Adana, a mesma agilidade felina. Somente o semblante de hoje não era de felicidade como antes quando Aisha dançava venturosa.
Malanda sente profundo pesar. Pensa em não deixar que desta vez Adana siga caminho distante do seu. Por que Aisha fora raptada de sua tribo e viveu sua vida enclausurada por muros estrangeiros.
Alma de mulher – A culpa que nos desperta
Quando tudo silenciou e Malanda pôde descansar seu corpo cansado, sua mente não permitiu que ele dormisse. Viajou para o arrependimento e a culpa. Como pudera ele deixar que Aisha vivesse longe dos seus, e presa. Ela que era como um pássaro e dispunha de todo o espaço que quisesse. Como pode ser tão indigno do seu olhar. O olhar que recebeu na hora derradeira de sua desdita.
Malanda teve ímpetos de sair madrugada afora a procura de Adana e lhe dizer que não temesse. Cuidaria de tudo, resolveria o que fosse para ser resolvido, desde que não visse mais o pesar em seu semblante. Mas ele não sabia nada a respeito dela. Teria que ter calma e investigar com prudência para não prejudicar seu propósito. Assim ele fez. No dia seguinte procurou voltar a casa e fez algumas perguntas ao jardineiro. Se fazendo de apreciador de algumas espécies raras de flor que tinha visto na noite anterior.
Franqueada a entrada na casa para ele, pelo menos a entrada dos empregados. Assim ele chegou até a cozinha onde Adana preparava uma grande jarra de limonada para os patrões. Ela, ligeira, impediu sua entrada e pediu que saísse ou ela chamaria o segurança, ele insistiu que queria lhe falar. Como ela não lhe dava tempo de dizer o que queria ele passou a mão pelos seus olhos e ela ficou estática. Como que hipnotizada.
Estando próximo dela, ele leu sua mente, soube qual o motivo de ela estar tão nervosa. Então a trouxe de volta passando novamente a mão pelos seus olhos. E logo dizendo que podia ajudá-la com sua gravidez e obtendo informações do marido preso.
Alma de mulher – O sexto sentido
A surpresa de Adana foi muito grande. Então ela deu ouvidos a ele, e ficou com medo do poder que ele tinha. Mas queria saber sobre o marido, qualquer informação. Assim estabeleceu-se que ele voltaria no dia seguinte. Adana passou o dia com grande ansiedade, e a noite não dormiu.
Não dormiu por diversos motivos, o marido que ela desejava saber onde estava sendo mantido, se sofria, se era torturado. Não dormiu porque pensava na criança vindo ao mundo num momento de tanta violência e desonestidade por parte do governo. Não dormiu porque a figura de Malanda incomodava muito, ela sentia medo de sua aproximação.
Saiu da casa e o calor era igual ao de dentro. Sentou-se na soleira da porta e olhou o céu estrelado. Sentiu um aperto no peito, um saudosismo estranho e opressor. No meio desse sentimento viu, como num sonho, um homem do deserto, com suas vestes características. Ele lhe olhava enquanto ela seguia sem andar, se afastava não tendo os pés no chão.
O saudosismo transformou-se em desconforto total e ela teve vontade imensa de chorar. Deixou sua dor extravasar, chorou baixinho por muito tempo, até sentir sua alma amolecida e calma. Levantou-se, o dia começava a amanhecer então, resolveu fazer um café, que tomou prazenteiramente.
Alma de mulher – Momentos de conflito
Chegou ao trabalho mais cedo. Entrou para o vestiário, vestiu o uniforme, e foi ao espelho mais uma vez. Tinha trazido na bolsa um par de brincos. Fazia dias que não se arrumava. Desde o dia da prisão do marido que perdera o gosto. Mas hoje estava com vontade ficar melhor.
Refutou com quase raiva o pensamento de que queria estar bonita porque Malanda viria logo mais. Ficou com vergonha de pensar algo tão errado, quando devia estar pensando no marido. Balançou a cabeça para cair o pensamento pecaminoso e saiu para iniciar suas atividades.
Na cozinha o patrão já estava lhe procurando. Ela assustou-se quando ele tomou suas mãos e segurou com força dizendo:
— Adana, seja forte.
Ela entendeu que o marido tinha sido executado. Não chorou, trincou os dentes e levantou o queixo. Olhou Ferdinand nos olhos e agradeceu.
— Obrigada, meu senhor, por me dar a notícia pessoalmente. Onde poderei buscar o corpo do meu marido.
Ferdinand tinha apreço por Adana, mas entendeu que ela era orgulhosa e não aceitaria sua ajuda naquele momento de sofrimento. Então forneceu a ela o endereço e a liberou para cuidar de tudo. Apenas disse que gostaria que ela lhe desse a oportunidade de homenagear o morto.
Ela se virou para ele para saber do que se tratava, pois inusitada era de fato essa conversa. Então ele pediu a Malanda que levasse Adana onde precisasse ir. Falou que ele era pessoa de confiança, seu amigo de muitos anos.
Alma de mulher – Um amigo vale ouro
Adana sentiu muita tristeza nessa hora, hora de perda em que não queria ninguém por perto. Mas Malanda não lhe deu tempo de refutar, tomando de sua mão o endereço, começou a traçar o trajeto. Disse a ela que fosse trocar o uniforme que ele a esperava no carro. O patrão emprestou o carro para ele levar Adana.
Ele cuidou de tudo, desde a papelada até a liberação do corpo. Depois ficou ao lado dela até o dia seguinte quando aconteceu o enterro. Não dormiu nem comeu, da mesma forma que ela.
Para Adana o tempo parou. O marido era um amigo que ela conhecera desde criança, cresceram juntos, estudaram juntos, militaram juntos. Como era idealista, mais que Adana, tomou para si a luta de um povo e morreu por ele.
Ela relembrou nessas horas todos os momentos que viveram, e muitas lagrimas rolaram pelo seu rosto.
O filho pequeno veio com a mãe. Assim Malanda ficou sabendo que eram duas crianças, pois a que estava por vir ele já tinha visto. Conheceu a mãe dela e reconheceu também nela um dos músicos da época em que viveram no deserto, eram amigos. E assim também agora eles se deram bem.
Alma de mulher – O luto de Adana
Adana fechou-se num mutismo estranho. Foi dispensada do trabalho pelo tempo que precisasse para se recuperar. E permaneceu em casa, com portas e janelas fechadas, sozinha. Estava com uma revolta muda, um desespero que lhe doía nos nervos. Sua circulação era afogueada e os pensamentos bailavam entre se matar e matar seus opressores.
Malanda esperou por uma semana, indo todos os dias na cada de Ferdinand. Na manhã do sétimo dia ele bateu na porta de Adana. Como ela não respondeu depois de ter chamado a atenção até dos vizinhos, botou a porta abaixo com o ombro. Encontrou Adana deitada, delirando com febre altíssima.
Na cozinha ele encontrou diversos ingredientes e preparou uma beberagem forte. Levou para ela e a fez beber forçando que ela abrisse a boca. Depois com água fresca fez compressas em sua testa, tirou seus sapatos, pois que ela ainda estava com eles. Tirou os brincos de coral. Ficou esperando que ela melhorasse. Cozinhou um caldo com legumes, algas e outros temperos. Enquanto ela dormia um sono leve, ele foi ao mercado e comprou a peso de ouro as folhas de algas.
A casa de Adana era diferente, a decoração era toda artesanal com peças de todas as partes da África.
Sua cozinha era equipada como poucas. As pessoas de sua classe não dispunham de recursos suficientes para manter o apuro que ela tinha. Malanda ficou intrigado. Como poderiam eles manter essa condição de vida.
Alma de mulher – Descobrindo armas e perigo
Ele resolveu dar uma olhada pela casa e abriu armários, gavetas, olhou atrás das portas. Até que percebeu com seus olhos argutos uma parede falsa atrás de um cortinado. Foi até lá e procurou um jeito de abrir. Quando conseguiu, ficou parado olhando e fechou o sengo numa clara demonstração de desagrado. Naquela parede falsa estava um arsenal completo. Armas do exército. Ele fechou tudo e ficou meditando. O marido de Adana era perigoso. Podia ser que ela estivesse correndo perigo e nem soubesse.
Adana ficou nesse estado por mais três dias, dos quais ele ficou lá, montando guarda. A mãe dela veio para ficar, mas, ele não permitiu. Agiu como se fosse o dono da casa. E Luanda em vez de se impor, gostou muito da atitude dele. Ela estava preocupada demais com o genro porque Adana deixava nas entrelinhas que ele estava ousando muito.
Na tarde do terceiro dia em que Malanda se instalara lá, Adana abre os olhos. Alheiamente passeia com o olhar pelo ambiente até se deparar com ele em pé a sua frente.
Ela tenta se levantar e não consegue. Quer falar, mas também não consegue. Ele a ampara e Leva para fazer a toalete. Ela não se mantém em pé, ele providencia para que fique acomodada em uma cadeira embaixo do chuveiro, lhe banha. Lava sua cabeça carinhosamente como se fosse ela uma criança. Depois lhe seca, lhe veste uma roupa leve.
Amparando a leva a mesa e lhe serve o caldo. Pede que tome devagar porque é muito forte e pode causar desmaio. Ela obedece. É assim que se sente, obedecendo.
Alma de mulher – Explicações necessárias
No final da segunda semana Adana está restabelecida fisicamente, somente uma tristeza insuportável ainda perdura nela. Malanda continua na casa. Foi buscar roupas e outros pertences e literalmente mora com ela. A vizinhança começa a olhar com olhos maus, e o falatório começa.
Depois que almoçaram Adana, muito sem graça, fala que agradece tudo que ele fez por ela. Mas que é hora de ele ir embora. Ele lhe responde sem pestanejar:
— Deseja que eu vá embora e lhe deixe com o arsenal como companhia?
Ela abre os olhos e demonstra grande medo.
— Eu vi o que vocês guardam aqui. Você deve saber que se você for pega não sobreviverá.
— Você pretende me denunciar?
— Se eu pretendesse já teria feito.
— Então esqueça o que viu.
— Impossível.
— O que você pretende então?
— Pretendo morar aqui com você. Quando você julgar que é tempo, me casarei com você, se for do seu desejo.
— Ah! Já tive um marido, foi o suficiente.
— Você não teve um marido, teve um companheiro de luta, de militância.
Adana não respondeu, pensou que era muito ter que discutir seu casamento com um estranho. Mas Malanda não se contentou com o silêncio.
— Adana, não estou pedindo que você me aceite. Estou propondo ficarmos juntos.
Se você realmente não quer que eu fique. Vou embora, mas quero que você me mande embora.
Alma de mulher – Feito prisioneiros
Enquanto conversavam, a casa foi cercada. Foram presos e levados a prisões separadas.
Adana não teve mais notícias de Malanda.
Ficou presa por três dias e foi libertada na madrugada, no quarto. Uma vez tirada da cela, a colocaram um pano em sua cabeça e a jogaram em um jipe. O motor ligado, andaram por umas duas horas. Posteriormente a velocidade diminuiu, antes de a jogarem para fora, um dos soldados lhe disse:
— Agradeça sua vida ao seu amante, que confessou tudo para salvá-la. Mesmo sabendo que ele é inocente, ele pagará pelo que fez seu marido.
Ela recebeu uma coronhada nas costas e caiu de boca na terra. Ficou ali imóvel até que o ronco do motor sumiu ao longe. Se levantou e não identificou o lugar onde estava, era ermo, deserto e escuro. Ela andou na direção de onde foi o jipe, andou, andou, sem pensar. Pensar doía.
Alma de mulher – O efeito é lei
Começou a avistar casas e o dia se pronunciava. Estava sem documentos e descalça. Os carros começaram a roncar e ela seguiu o ronco, chegou numa avenida. Procurou um telefone e ligou para a casa dos patrões.
Ferdinand foi pessoalmente buscá-la. Quando ela voltou para casa, encontrou tudo revirado, o arsenal havia desaparecido, o que de certa forma causou um alivio.
Ela perguntou para o patrão sobre Malanda que disse que não tinha notícias dele. Que sabia que tinham sido presos e que ele confessara coisas que não tinha feito. Adana se culpou muito por ter permitido que o marido trouxesse aquele armamento para casa. Ferdinand pediu a ela que não buscasse notícias de Malanda porque estava sendo vigiada. Assim ela seguiu sua vida, por mais alguns meses. Estava prestes a dar à luz.
Sentia vontade de sair procurando Malanda. Às vezes sonhava com ele, mas o via como um homem do deserto, mas sabia que era ele. Um sonho angustiante onde ela olhava para ele e pedia ajuda, mas ele não se movia.
Alma de mulher – a família se amparando
Resolveu então que se não podia ir pela via oficial, iria por outro meio. Mas, queria notícias dele, afinal ele a salvara, por duas vezes. Poderia ser condenado à morte por algo que nem sabia direito o que era. Sentia uma dívida moral com ele, então foi até a casa de sua mãe e disse:
— Mãe, eu sempre fui contra você sabe bem, mas preciso falar com Mbemba.
A mãe levantou a cabeça e disse por sua vez:
— Você?
— Sim. Eu preciso saber algumas coisas que estão me martirizando, e ele é o único que pode me ajudar.
A mãe falou que ela esperasse, que iria ver se dava para ser naquele dia mesmo. Depois de meia hora ela voltou e entregou um bilhete para Adana. Ela saiu e voltou tarde da noite. A mãe ao ver sua aparência percebeu que precisava socorrê-la imediatamente. Assim, algumas horas depois, nasceu seu segundo filho.
Passaram-se mais três meses. Ela estava trabalhando novamente, a mãe cuidando dos dois filhos. Era uma avó sem igual. Adana ficava tranquila.
Alma de mulher – Adana, foi um pai egoísta
Numa noite muito quente, Adana deitou-se e dormiu imediatamente. Um sono estranho, que não podia ser controlado. Mesmo sendo cedo para dormir ela se deitou. Sonhou que estava em uma alameda longa e reta com calçamento de pedra. Ouvia os cascos dos cavalos batendo forte, numa marcha ritmada. Viu-se montada em um cavalo branco belíssimo. Vestia um uniforme dotado de colete de couro, com um franjado largo também de couro que lhe caia nas cochas. Um elmo dourado uma grande pena branca presa, braceletes largos apertavam o punho, e sandálias trançadas até quase os joelhos.
Ouvia os cascos de mais cavalos. E viu do seu lado direito um cavalo branco igual ao seu, um cavaleiro vestido com uniforme, e apetrechos iguais. Seguiam calados, cansados, pela via appia ântica. O cavaleiro ao lado de Adana falou:
— Pai, pretende se demorar antes de voltar ao acampamento?
— Somente dar meu depoimento, voltarei em dois dias, e tu filho, o que fará?
— Não sei ainda, desejo teu conselho.
— Como posso eu ajudar em tua decisão meu filho?
— Sabemos que em Roma, não poderei ficar, preciso decidir para onde ir. E não gostaria de ficar longe de ti. Não saberia viver sozinho.
O pai que era Adana naquela vida, sentiu grande tristeza, quando disse:
— Filho meu, por nada eu desejaria tua ausência. Mas não posso pedir por ti no senado, como sabeis. Teria que levantar um véu que nos destruiria a todos.
— Sim pai. Então seguirei para Grécia. Não devo mais voltar.
— Sim filho. Será o melhor a fazer.
Alma de mulher – O arrependimento de Adana
Noutro momento Adana que era o soldado estava em um átrio e meditava consigo mesmo:
“Filho querido porque te alijei de mim? Como estarás vivendo sozinho em terra tão estranha a nós? ”
Nesta hora entra um mensageiro trazendo uma correspondência. O soldado abre com presteza, lê e se dobra num rito de dor silenciosa. Deixa cair a carta onde noticia a morte do filho por bando salteador de estradas.
Adana acorda com o suor escorrendo pelo corpo todo. Lembra do sonho vivamente e sabe, sem saber como, que o filho daquela vida é Malanda. E por osmose o homem do deserto também é Malanda.
Toma decisão e não voltará atrás. Sentiu que falhou e não quer mais falhar. Malanda já lhe salvou pagando com a própria vida antes e vai fazer de novo. Espera o dia amanhecer, sentada na cozinha, pensando em se apresentar para a polícia antes de ir para o trabalho. Mas depois vai mudando de ideia e resolve ir primeiro falar com o patrão.
Alma de mulher – O destino comanda as ações
Quando pede para ser atendida por Ferdinand, ele pede que ela espere uns minutos pois está tratando um assunto urgente. Então ela resolve que não vai esperar, e segue para o vestiário, vai se trocar pegar a bolsa e sair. Ao vestir sua roupa usual, faz movimentos bruços, rasga o vestido, vai procurar a caixa de costura para consertar e se demora um pouco mais. Nesse meio tempo Ferdinand vem procurá-la dizendo:
— Adana, enfim consegui tirar Malanda das garras da polícia, mas ele está muito mal, precisa dos seus cuidados.
Ela sente seu coração parar. O que significaria muito mal. Nem precisou perguntar Ferdinand falou:
— Ele foi castrado a sangue frio. Não o mataram porque intercedi junto ao governo. Eles sabem que ele é inocente, mas a crueldade não tem limite.
Adana ficou paralisada por alguns minutos. Depois retomou sua presença de espírito e quis saber o que deveria fazer.
Ferdinand disse que providenciaria para que ele fosse levado a uma clínica. Mas que logo teria que ir para casa, que ele era viúvo e não tinha filhos, então, pensou nela. Assim foi feito e uma semana após ele estava instalado na casa de Adana. Foi muito torturado, e por isso sua saúde estava abalada demais.
Alma de mulher – O amor estabelecido na amizade
Ela conseguiu uma licença e cuidou dele. Durante esses dias coisas estranhas e desconhecidas dela aconteceram. Ela começou a sonhar muito, sonhos como aquele dos soldados, do homem do deserto. E em todos os sonhos encontrava Malanda, ora como homem ora como mulher, mas sempre próximo dela, que também alternava. Ele foi se recuperando vagarosamente. Foram se tornando amigos, mais amigos, e mais e mais amigos.
Ferdinand teve um enfarto fulminante e deixou a família em situação complicado com o governo. Pois ninguém sabia que ele usara grande soma de dinheiro para subornar pessoas, para tirar Malanda da prisão.
Então Adana trabalha até hoje para a família, cuida de tudo, para que Sândi não se sinta explorada.
Sândi é voluntariosa e orgulhosa, não conhece a história que aconteceu debaixo do seu teto, sempre viveu para a sociedade.
Alma de mulher – Reflexão de Adana
Hoje Adana está especialmente saudosa, sentava fazendo seu trabalho manual, rememorou tudo, desde o dia que conheceu Malanda. Faz tantos anos, mas tudo está colorido em sua memória.
Essa data não pode passar em branco, pensa ela. Assim é que vai até a cozinha e abrindo um armário pega duas taças de cristal. Arruma as flores no vaso. Liga o aparelho de som, que toca um lamento africano muito triste. Ela canta junto, com sua voz aveludada.
Vinte anos desde que ele veio abrir a porta com o ombro. Ela sorri sozinha pensando:
“Que união é essa que vem das dobras do tempo…
Que união é essa que não permite distanciamento…
Que união é essa que traz o outro como o vento…
Que união é essa que tece os nossos destinos…
Que união é essa entre pai e filho…
Que união é essa entre rainha e vassalo…
Que união é essa? ”
Alma de mulher – Reflexão de Malanda
Enquanto ela cismava, não ouviu que Malanda chegara, desligou o motor e entrou. Conhecia Adana tanto que quando ouviu a música lamentosa, sabia que ela acordada sonhava. Tocou-lhe o ombro e ela se virou, estava com o brinco de coral e sua cabeça toda raspada. Ele sorriu para ela e disse:
“Essa união é para poucos, porque poucos sabem…
Essa união não é conhecida do vulgo…
Essa união não é do mundo…
Essa união é para os ungidos…
Essa união não é para o pai e para o filho…
Essa união não é para a rainha e o vassalo…
Essa união é para os eleitos, que se buscaram…
Essa união é acordada muito antes que imaginamos”
Abre a garrafa que trouxe, serve as taças e brinda. Ambos bebem e se sentam de mãos dadas, olhando o céu a esta altura estrelado.
Alma de mulher – Minha reflexão
Essa é a história de Adana e Malanda, duas almas afins, que caminham por muitas jornadas e que evoluem juntas.
Em tantas vidas que viveram próximos, aprenderam a se reconhecer e respeitar. Num longo e doloroso processo de experiências.
Precisaram crescer individualmente e para tanto muito se prejudicaram. Até o ponto em que o aprendizado passa a ser conjunto.
É o que vivem agora, cada um com sua história de vida, que se unem e desenvolvem paralelas e misturadas.
Quem de nós é Adana?
Quem de nós é Malanda?
Alma de mulher – O casal é nossa representação
Todos somos, Adana e Malanda, todos podemos viver a evolução com mais clareza e sutileza.
Podemos caminhar sobre as brasas e não nos queimarmos. Porque as brasas não nos atraem, o que nos atrai é somente o brilho vermelho que transmuta e modifica.
Podemos entrar no mar e não nos afogarmos. Porque a água em si não nos atrai, o que nos atrai é o som das baleias que cantam harmoniosas em agradecimento.
Podemos sofrer sem nos perdemos. Porque a dor não nos atrai, o que nos atrai é o que ela nos trará em virtudes quando terminar.
Podemos possuir fortuna e não nos apegarmos. Porque o que os atrai não é o brilho do ouro, nos atrai é o bem que ele pode promover.
Podemos ver o sofrimento alheio e não nos desesperarmos. Porque o sofrimento não nos atrai, o que nos atrai é o futuro glorioso que ele dará ao sofredor.
FIM
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