O Hino da Pérola I – Raul Branco

O Hino da Pérola I – Raul Branco

Esse Hino, atribuído a Bardesanes, influente poeta do gnosticismo cristão do século II. E oferece uma excepcional oportunidade para percebermos a profundidade do misticismo nos primórdios de nossa tradição interna.

O Hino apresenta um comovente relato da peregrinação da alma. Esta culmina com a sua ‘salvação’, representada pela aquisição da ‘pérola’ (a gnosis). Então, como consequência, o retorno ao reino da Casa do Pai, num estreito paralelo com a parábola do Filho Pródigo.

Deixemos que a mensagem celestial de esperança penetre em nossos corações. Pois a estória que será narrada é a história de nossa vida.

I – No reino dos Pais:

“Quando eu era criancinha, demasiado novo para falar e morava no Reino da Casa de meu Pai, deleitando-me na riqueza e no esplendor daqueles que me nutriam, meus pais me enviaram do oriente, nosso lar, numa missão, equipado com suprimentos para a jornada.

Das riquezas de nossos tesouros eles me deram um grande carregamento, mas que era leve, para que eu pudesse carregá-lo sozinho. A carga consistia de ouro das terras altas, prata dos grandes tesouros, jóias de esmeraldas da Índia e ágatas de Kushan.

E cingiram-me com diamantes. Retiraram a minha veste cravejada de jóias e adornada de ouro que, por seu amor, haviam feito para mim, e meu manto de púrpura, confeccionado na minha exata medida.

E fizeram um pacto comigo, gravando-o em meu coração para que eu não pudesse esquecê-lo, dizendo isto:

‘Se tu fores ao Egito e dali trouxeres a pérola que se encontra no meio do mar, envolta pela serpente voraz, então colocarás outra vez a veste cravejada de jóias e, por cima, o manto que tanto aprecias e serás um herdeiro de nosso reino, juntamente com teu irmão, o segundo em nossa hierarquia’.

II – O início da jornada:

Deixei o Oriente e parti acompanhado de dois guias. Pois o caminho era difícil e perigoso e eu era jovem para uma tal viagem.

Atravessei as fronteiras de Maishan, o lugar de encontro dos mercadores orientais. E cheguei à Terra de Babel e entrei pelas muralhas de Sarbug.

Continuei e, chegando ao Egito, meus acompanhantes separaram-se de mim.

Incontinente procurei a serpente, estabelecendo-me próximo de sua morada. Aguardava a ocasião em que ela ficasse sonolenta e fosse dormir, para então tirar-lhe a pérola.

Como estava sozinho e me mantinha à parte, parecia um estranho para meus companheiros de hospedagem. Lá eu vi um homem livre, meu parente da terra da Alvorada, jovem formoso e bem favorecido, filho de Nobres.

Ele veio e juntou-se a mim. Fi-lo meu parceiro predileto, um parceiro para minhas jornadas. Como constante companheiro alertou-me sobre os egípcios, para que evitasse misturar-me com os impuros. Pois, havia me vestido como eles, para que não pudessem imaginar que eu era estrangeiro. E tinha vindo de longe para apossar-me da pérola. E  e pudessem assim incitar a serpente contra mim.

III – As tentações da matéria:

Mas por alguma razão, eles souberam que eu não era de seu país. Com suas artimanhas, apresentaram-se a mim e ofereceram-me seus alimentos para comer.

Ao prová-los, esqueci-me que era filho de um Rei e tornei-me um servo do rei deles.

Esqueci completamente a pérola para a qual meus Pais me haviam enviado. E, com o peso de seus alimentos, mergulhei num sono profundo.

Meus Pais percebiam tudo aquilo que estava acontecendo, e ficaram ansiosos.

Foi feita então uma proclamação em nosso Reino. Que todos se apresentassem rapidamente no Pórtico. E então os reis, chefes de Partia e todos os nobres do Levante decidiram que eu não deveria ficar no Egito.

Escreveram-me uma carta e nela todos os nobres assinaram seu nome:

“De parte de teu pai, o Rei dos Reis, de tua mãe, Senhora do Levante, e de nosso segundo, teu irmão, ao nosso filho no Egito, saudações! Acorda e desperta de teu sono. Ouve as palavras de nossa carta! Lembra-te que és filho de um rei; vê a quem serviste em tua escravidão. Pensa outra vez sobre a pérola, a razão pela qual viajastes ao Egito. Lembra-te de tua veste gloriosa e de teu esplêndido manto, para que possas outra vez vesti-los e usá-los como ornamentos, e para que teu nome possa ser lido no Livro dos Heróis, e com nosso sucessor, teu irmão, possas ser herdeiro em nosso reino.”

IV – A ajuda que vem do alto:

A carta, que o Rei havia lacrado com sua mão direita, era como um mensageiro contra a ameaça dos filhos de Babel e dos rebeldes demônios do Labirinto. Ela voou na forma de uma águia, a rainha de todas as aves. Voou até pousar ao meu lado, transformando-se num discurso inteiro.

Com sua voz e o som de sua asas, levantei-me, despertando de meu sono profundo. Tomei-a, beijei-a, parti seu lacre e a li. As palavras de minha carta estavam redigidas como as que estavam escritas em meu coração.

Lembrei-me naquele momento que eu era filho de rei. E minha alma, nascida livre, tinha saudade daqueles da mesma natureza.

Lembrei-me novamente da pérola, pela qual eu havia sido enviado em missão ao Egito. E comecei a cativar a terrível e ruidosa serpente.

V – O conhecimento de si mesmo:

Encantei-a para dormir, cantando para ela o nome de meu Pai, o nome de nosso segundo e o de minha mãe, a Rainha do Oriente.

Apoderei-me, então, da pérola e parti em direção à casa de meu Pai.

Retirei as vestimentas sujas e impuras, deixando-as em seu país de origem. Dirigi-me para o caminho pelo qual havia vindo, a estrada que leva à Luz de nossa casa, o Oriente.

No caminho, encontrei diante de mim a mensagem que havia me despertado. E assim como ela havia me despertado com sua voz, agora me orientava com sua luz que brilhava à minha frente.

Com sua voz vencia meu temor, e com seu amor me conduzia. Eu segui adiante…

VI – As vestes de luz:

Vislumbrava, às vezes, as vestes reais de seda, brilhando diante de mim. Segui adiante. Passei pelo Labirinto. Deixei a Terra de Babel à esquerda. E cheguei a Maishan, o lugar de encontro dos mercadores, que se localiza na costa.

Meus pais enviaram-me a Veste de Glória que eu havia despido e o Manto que a cobria. Enviaram-nos das alturas de Hyrcânia, pelas mãos de seus distribuidores de tesouros. Pois que, por sua lealdade, a eles podiam ser confiados.

Sem me lembrar de seu esplendor, pois a havia deixado na Casa de meu Pai na minha infância, ao vê-la, imediatamente a Veste pareceu-me como a imagem de mim mesmo.

Percebi nela todo o meu ser e, por meio dela, reconheci-me e percebi-me. Pois, apesar de termos sido originados da mesma unidade, éramos parcialmente divididos. E, no entanto, éramos também unos em semelhança.

Também, os tesoureiros que a haviam trazido do alto para mim, vi que eram dois seres. Mas havia uma única forma em ambos, um único símbolo real consistindo de duas metades. E traziam meu dinheiro e minha riqueza em suas mãos e deram-me minha recompensa.

A gloriosa veste reluzente, enfeitada com brilhante e esplendor de cores. Com ouro, pérolas e também com pedras preciosas de diferentes cores. Para realçar sua grandeza estava cingida com diamantes.

E, sobretudo, a Imagem do Rei dos Reis estava estampada inteiramente nela.

VII – O conhecimento se apodera do espírito:

Pedras de safiras tinham sido afixadas na gola com lindo efeito. Percebi que movimentos de gnosis abundavam em toda sua extensão, e que estavam se preparando como que para falar.

Ouvi o som de sua música, que sussurrava ao descer. ‘Sou eu que pertence àquele que é mais forte do que todos os seres humanos e para o qual fui indicada pelo próprio Pai. E percebi em mim como minha estatura aumentava com sua atividade’.

E, agora, com seus movimentos reais, ela vinha em minha direção. Como que apressada nas mãos de seus doadores, para que eu pudesse tomá-la e recebê-la. E de minha parte, também, meu amor instava-me a correr ao seu encontro e tomá-la.

Estendi-me para recebê-la. Com sua beleza colorida vesti-me e enrolei-me em meu manto de cores resplandecentes. Vestido dessa forma, ascendi ao Portal das Boas Vindas e da Reverência. Inclinei minha cabeça e prestei homenagem à glória do Pai que a havia enviado. Cujas ordens eu havia cumprido, e que, de sua parte, também havia feito o que prometera.

VIII – De volta ao reino espiritual:

Ele recebeu-me com alegria. E fiquei com Ele em seu Reino, e todos seus súditos estavam cantando hinos com vozes reverentes.

Ele permitiu-me também ser levado à corte do Rei em sua companhia, para que com a pérola eu pudesse comparecer diante do Rei.

A estória começa quando uma alma demasiado nova para falar (exercer seus poderes) é enviada, por seus pais, do mundo espiritual para o mundo material. Essa é a sua missão, que representa a grande peregrinação da alma.

O oriente é onde nasce a luz do sol físico. E, no sentido figurativo, é a origem da Luz espiritual primordial. A alma é enviada com suprimentos para a jornada. Estes são a substância de todos os planos pelos quais o peregrino deve passar.

As riquezas do tesouro do pai, jóias e metais preciosos, referem-se aos poderes espirituais. Possuem grande valor e nenhum peso, podendo ser carregados facilmente pela alma.

IX – Um tesouro chamado sabedoria:

O ouro das terras altas simboliza a mais elevada sabedoria espiritual e a prata a compreensão espiritual. O diamante, a pedra mais preciosa, simboliza a essência espiritual do universo e sua expressão no homem como coragem intrépida e vontade indomável (a pedra mais dura que risca todas as outras). A safira representa a sabedoria.

Para encetar a viagem o jovem deve retirar sua veste real e seu manto de púrpura. Temos aqui a descrição do processo involutivo, a penosa descida do espírito à matéria.

A alegoria da retirada das vestes espirituais refere-se à desativação dos poderes espirituais no espírito encarnante. Ele deve recobrir-se com roupagens cada vez mais grosseiras.

Culminando na colocação de vestes que, por suas vibrações pesadas, são consideradas como impuras, o corpo astral e o físico. Segue-se, então, o curioso pacto feito por seus pais. Gravado no coração do peregrino, no âmago de seu ser, para que nunca mais possa ser esquecido.

Esse pacto simboliza a missão do homem no mundo, que encerra a promessa de seu retorno triunfal às glórias celestiais.

O conhecimento interior desse pacto explica a insatisfação latente que aflora no homem em determinados momentos.

Quando experimenta um sentimento de carência, uma saudade inexplicável que o persegue. Até que entende que as coisas externas deste mundo não atendem aos profundos anseios da alma.

X – Finalmente em unidade com a Divindade:

Começa, então, a busca do verdadeiro tesouro, quando se dá a compreensão de que vivemos em desterro neste mundo distante.

O pacto envolve a ida ao Egito, onde deverá recuperar a pérola preciosa que se encontra escondida no meio do mar, guardada pelas forças da matéria, simbolizadas pela terrível serpente.

Essa pérola representa a gnosis, termo grego que significa conhecimento. Porém, não um conhecimento qualquer, mas o conhecimento último da Realidade, que é vivencial e não meramente intelectual.

O mar é o símbolo tradicional do plano emocional, onde se produzem as paixões e os desejos. A serpente, sobre a qual quase nada é dito no Hino, simboliza a tremenda força telúrica que, como desejo sexual, é a força da procriação, mas que quando sublimada e dirigida para o alto torna-se o poder da criação espiritual.

Insinuada como um monstro terrível, a serpente é na verdade o fogo serpentino, chamado no oriente de kundalini. Ela que deve ser despertada e elevada cuidadosamente até o centro da cabeça, onde se encontra com a força espiritual que desce pelo chacra coronário para conferir a iluminação ou gnosis, simbolizada pela pérola.

O curioso é que o prêmio por essa realização extremamente difícil é o retorno ao estado inicial. Em paralelo com outras tradições, percebe-se aqui que os universos passam por infindáveis ciclos de manifestação e retração.

Em cada ciclo a consciência divina desce progressivamente à matéria, num processo de involução. Seguindo por uma etapa evolutiva em que vai se subtilizando, desprendendo-se progressivamente do jugo da matéria. Até manifestar plenamente sua natureza divina original.

1. A versão aqui apresentado é uma tradução cotejada dos textos dos livros The Gnostic Religion, de Hans Jonas, The Other Bible, de Willis Barnstone, The Hymn of the Robe of Glory, de G.R.S. Mead e The Gnostic Scriptures, de Bentley Layton. As diferenças existentes entre as versões em inglês desses quatro autores explicam-se, em parte, pelo fato de existirem originais em grego e siríaco, que apresentam algumas diferenças. Os comentários são uma adaptação de um artigo de nossa autoria intitulado O Hino da Veste de Glória ou Hino da Pérola, publicado em TheoSophia, de julho de 1997 e publicado como anexo, com algumas adaptações, no livro de nossa autoria OS ENSINAMENTOS DE JESUS E A TRADIÇÃO ESOTÉRICA CRISTÃ, Editora Pensamento, 1999. 2. Vide Geoffrey Hodson, The Hidden Wisdom in the Holy Bible, vol. I, pg. 181/183.




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