Seu Carlito, A Persona e Jung
Seu Carlito, A Persona e Jung
Quando menina, havia uma vila muito antiga ao lado da minha casa. Na casa IV vivia um senhor bastante retraído.
Invariavelmente, todas as manhãs saía para seu emprego de funcionário público, sério, educado e circunspecto.
Retornava ao lar no mesmo horário todos os dias e ninguém mais via o Sr Raul.
Pelo que sei, ajudava à esposa nos afazeres do lar e se retirava para ficar lendo até tarde da noite.
Menina atrevida e curiosa, cheguei a bater em sua porta e me convidar para entrar.
Havia uma biblioteca enorme em sua casa que me fascinou.
Era, contudo, o único luxo daquela casa modesta, como modesta era a vila, assim como a vida de seus habitantes.
Fui muito bem recebida por ele e perguntei se já havia lido todos aqueles livros. Ele me disse que sim, e que esse era seu passatempo predileto. Acolhedor, foi quando vi seu primeiro sorriso.
Surpreendentemente, aos domingos saía daquela casa sempre no mesmo horário, o Seu Carlito.
O senhor Raul se vestia de Chaplin e andava pelo bairro cumprimentando a todos. Além do mais, atuando como um cover do Charles Chaplin.
Ele sabia todas as falas de seus filmes e fazia apresentações quer na nossa rua, quer nas praças próximas.
Decerto era um outro homem. Após as apresentações, distribuía sorrisos, afagos, apertos de mão, e pasmem, conversava bastante quando solicitado.
Um homem feliz, leve e solto.
Na minha rua todos lhe chamavam de Sr Raul, e nem sei se todos sabiam quem era realmente o Charles Chaplin dominical.
Eu costumava chamá-lo de Seu Carlito. Achava o nome apropriado, embora não sendo seu nome civil, mas ao mesmo tempo, respeitoso.
Seu Carlito, sem dúvida, era a personalidade número 2 do Sr Raul? Ou seria a número 1?
Seguramente, uma das duas era apenas uma persona. Uma máscara que ele usava para sua adaptação social.
Como ir trabalhar como Seu Carlito? O sistema absorveria um Seu Carlito como algo normal, mesmo que cumprisse com excelência as mesmas funções?
Não creio. Seu Carlito era maior do que o sistema. Era maior do que a vila aonde morava, era maior do que a vizinhança da vila, e provavelmente, maior do que poderiam aceitar.
Seu Carlito, homem simples e de origem muito modesta, precisava sobreviver e fazer a vida funcionar, e usava o Sr Raul como persona.
Já mais velha, cultivei o hábito de bater na porta do Seu Carlito para conversar sobre livros, filmes, questões que fugiam ao ambiente em que o Sr Raul estava inserido.
Gostava dele, do seu chapéu coco, da sua bengala, que usava malabaristicamente, e especialmente de conversar com ele sobre temas não banais e mais profundos do que os do Sr Raul.
Ele se acostumou comigo e era o Seu Carlito sempre, mesmo sem a indumentária e a performance.
Jung afirma que todos temos uma persona, usamos máscaras para sermos aceitos socialmente no ambiente em que nos inserimos. Essa máscara decerto é uma proteção da qual nosso ego lança mão.
Hoje estou convicta de que o Sr Raul era a persona de um homem que era mais do que o Sr Carlito das performances, mais do que o Sr Raul que foi construído desde muito cedo no ambiente familiar para protegê-lo ou por incompreensão. Era mais próximo de uma espécie de Charles Chaplin II
Bastante idoso, tanto ele quanto sua esposa, faleceram logo após meu casamento. O casal não tinha filhos.
Não sei o que escreveram em sua lápide. Eu teria escrito Charles Chaplin II
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