PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO I

PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO I

autor : Armando Nascimento Rosa

Proémio

A atitude gnóstica face ao mundo e à significação da existência humana mostra-se em maior amplitude, no exercício reflexivo, se a tomarmos como uma forma de visão do intelecto – na qual se conjugam o pensar, o crer e o imaginar – resultante do confronto entre a consciência e um universo exterior a esta que apresenta ao sujeito as características do estranhamento, da hostilidade e da ilusão ontológicos.

«Estrangeiro absoluto» 1, divisa gnóstica por excelência, foi o cognome conferido por Eduardo Lourenço a Fernando Pessoa, em cuja obra – magno labirinto alquímico – podemos surpreender em actividade a visão gnóstica na motivação profunda de uma criação literária, também simultaneamente filosófica pelo seu móbil expressivo se exprimir numa poética demanda do conhecimento. Segundo as palavras de Yvette K. Centeno, «uma raíz antiga, maniqueísta, e outras formas de gnosticismo e catarismo mais recentes, explicam talvez parte da dificilmente explicável filosofia de Pessoa, hermética, sem dúvida, mas numa multiplicidade de sentidos, só comparáveis aos múltiplos da heteronimia». 2

A nossa abordagem tentará identificar os olhares penetrantes nos quais uma perspectiva gnóstica se metamorfoseia, proteiforme, em textos vários do poeta-filósofo, sinalizando entendimentos do tempo e da história que só parecem permeáveis a uma mais clara exegese por meio das especulações da Gnose a este respeito.

«A Gnose permite-te que saibas de um Deus desconhecido e remoto em relação a este mundo, um Deus em exílio face a uma criação falsa que, em si mesma, constituiu uma queda. Tu, em ti próprio, ao conheceres e seres conhecido por este Deus alienado, chegarás a compreender que originalmente o teu eu mais profundo não fazia parte da Criação-Decaída, mas que remonta até a um tempo arcaico antes do tempo, quando esse eu mais profundo integrava uma plenitude que era Deus, um Deus mais humano do que qualquer outro venerado desde então.»

HAROLD BLOOM, Augúrios do Milénio
– A Gnose dos Anjos, dos Sonhos e da Ressurreição

«A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e, como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.»

BERNARDO SOARES / FERNANDO PESSOA, Livro do Desassossego

Em tábua biográfica datada de Março de 1935, escassos meses precedendo a sua morte física, Pessoa confessa-nos ser um cristão gnóstico «inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma (…)». 3 Não espanta esta assunção quanto ao seu posicionamento religioso e, consequentemente, filosófico, já que a confirmá-lo se rastreiam inúmeros indícios, disseminados não apenas nos textos de carácter hermético e esotérico nos quais tais assuntos teriam morada inevitável, mas também na generalidade da sua obra literária em poesia e prosa, mais directamente destinada pelo autor a conhecer a publicação maioritariamente póstuma.

A segunda epígrafe escolhida é disso testemunha, de entre o magma aurífero que compõe a descontinuidade intérmina do Livro do Desassossego: neste parágrafo, dominado por um dualismo platonizante, é explícita a identificação de um grau qualitativamente superior de vida associado ao pensamento, entendido como função do espírito; para Pessoa, é no espírito que se vive, porque aí reside a possibilidade de uma mais intensa percepção do mundo, onde o sentir interage e confunde-se, nessa pessoana dialéctica, com o devir do pensamento que sobre as sensações se exerce («O que se sentiu foi o que se viveu. »)

Ao acentuar a importância em aprofundar a chamada vida interna das almas contemplativas, por oposição àquela que se dirige às solicitações externas – mundanais e estranhas à estimulação do intelecto cognoscente -, Pessoa professa a concepção gnóstica inerente à etimologia do termo grego gnosis: o acto do conhecimento, acto este dirigido ao conhecimento de si mesmo, como na máxima adoptada por Sócrates, identificando-se este si mesmo com a centelha divina de que cada ser humano é portador, ainda que alienada no exílio corpóreo, mistificador, de um cosmos que é estrangeiro à sua natureza transcendente.

Para o gnóstico, a atitude religiosa começa fundamentalmente por uma consciencialização espontânea da transcendência interior; a descoberta, na mais ignota espiral do sujeito, de que algo nele pulsa e pensa em estranhamento e descontinuidade face ao mundo fenoménico da nossa experiência psicossocial e fisiológica. É neste sentido que o gnóstico desejará atingir o desenvolvimento das faculdades de conhecer-se que o ponham num mais pleno contacto com o que de divino existe em si, desvalorizando a mera e irreflectida fé ou crença em dogmas prévia e exteriormente dispostos. Esta descredibilização do dogma e, com ele, das instituições eclesiais que o impõem, encarniçou, em termos históricos, a ira dos cultos oficiais estabelecidos, especialmente do catolicismo romano que, dada a sua ambição imperial hegemonizante, sempre viu nas diversas manifestações de gnose um Abel a abater.

Avessa a qualquer organização que a represente, a religiosidade gnóstica irrompe de um individualismo radical, na senda desse fragmento de luz que é o deus interior cativo em cada um de nós; só depois disso se configura a hipótese de uma divindade oculta que lhe deu origem e à qual ele pertence co-essencialmente. Para os gnósticos, a condição actual do Deus autêntico é o arquétipo do que aconteceu ao espírito humano pois, tal como este, sofrera esse Deus um degredo inexplicável, extra-cósmico, desde a queda primordial; o Big Bang da Criação que as diversas correntes do gnosticismo sempre se esforçaram por dilucidar nas suas imaginosas e extravagantes cosmogonias – já que a parúsia gnóstica tem sempre lugar no fluxo da existência, desde que o sujeito se mostre receptivo às mensagens extramundanas, traduzidas em linguagem simbolicamente apreensível às limitações gnoseológicas do ego.

O Deus veraz do gnosticismo, para todas as variantes desta religião multiconfessional, não é de modo algum o criador do cosmos (o Cosmocrator), uma vez que a imperfeição essencial deste e o predomínio nele do mal e do sofrimento faz com que o gnóstico atribua a fabricação do universo que habitamos a um demiurgo ignaro e prepotente, semelhante ao Deus enganador cartesiano, que usa toda a sua indústria em evitar que o humano aceda ao verdadeiro conhecimento de si e da situação de encarcerado em que se encontra. As metáforas da ilusão, do entorpecimento, do engano, do sono e da inquieta suspeição face a tais estratagemas (estudadas por Hans Jonas em The Gnostic Religion – The Message of the Alien God and the Beginnings of Christianity) são tópicos característicos da natureza humana retratada pela literatura gnóstica antiga, sobrevivente às ferozes perseguições de que foi vítima – enriquecida no século XX pela descoberta, em Nag Hammadi, no Egipto, em 1945, de tratados manuscritos de uma comunidade dos primórdios da nossa era que, sentindo-se ameaçada, os escondera numa ânfora sob as areias de uma gruta do deserto, decerto esperando por um tempo histórico futuro mais promissor.

Tais tópicos proliferam ramificados em toda a escrita de Pessoa, preocupada que está em transmutar conhecimento a partir da forma do verbo literariamente trabalhado, e um estudo deles daria lugar para longa e redobrada exegese que não se acomoda à modesta brevidade prevista para este texto. Optámos por seguir um pólo temático que nos encaminhasse o sinóptico trajecto; e foi a ideia do tempo que nos despertou para, através dela, apreciar motivos gnósticos da visão pessoana. O tempo, emblema e corredor que empareda o fenómeno de existir, de existirmos como indivíduos, é na interpretação gnóstica do Génesis o avatar nuclear da queda ancestral, condicionadora do humano tal como ele hoje se encontra. O tempo é um simulacro inferior e degradado da eternidade, que o transcende e o anula, de acordo com o que Platão já no Timeu descreve; se bem que o demiurgo platónico, a quem se deve a harmónica arquitectura de um universo dotado de perfeição volumétrica, não seja coincidente com a imagem do demiurgo desastrado e nefasto do pessimismo objectivo dos gnósticos. O Timeu terá inspirado as reflexões sobre o tempo desses profetas sem credo, embora não satisfizesse a sua exasperação diante da existência concreta. Mesmo assim, a herança platónica, com o seu dualismo cosmológico e a sua fundamentação filosófica da transmigração pitagórica, é sem dúvida a contribuição mais decisiva que a cultura ática fornece para o sincretismo gnóstico que floresceu na Alexandria helenística; essa cidade-símbolo onde, no dizer de Jung, se reuniram o Ocidente e o Oriente, isto é, uma síntese em que o legado grego pitagórico-platónico se congrega no hermetismo egípcio e se combina com a mística judaica em torno das origens, a mensagem cristã, e os dualismos iranianos filiados em Zoroastro. Não nos esqueçamos porém que a rasura do mal no idealismo de Platão e a insistência deste numa parcial positividade ontognoseológica não será perfilhada pela permanente inquietação do gnóstico perante a possibilidade de se atingir um conhecimento pleno das verdades mais autênticas, imersos que estamos no engano universal deste mundo, separados do pleroma, isto é, a divina plenitude. Num poema sem título de 1934, composto por nove quintilhas, Pessoa comunica-nos a angústia do sujeito em face de um conhecimento cósmico perdido, numa excepcional síntese mitopoética da condição gnóstica (vazada em moldes fortemente maniqueus) a que voltaremos ainda, mas que da qual citamos agora quatro estrofes. Nelas se dá conta de um Deus oculto, liberador e ético, que se distinguirá do frio geómetra demiurgo responsável pela clausura virtual do tempo e do espaço, capaz de provocar a alienação vivente dos humanos (alienação essa a que o cinema fantástico viria recentemente a dar imagem, em filmes que problematizam a natureza do real, como sejam Dark City/A Cidade Misteriosa, de 1998, direcção e argumento inicial de Alex Proyas, e Matrix, de 1999, realizado e escrito por Andy e Larry Wachowski, duas fábulas messiânicas oriundas de um flagrante imaginário gnóstico).

«Que Deus duplo nos pôs na alma sensível
Ao mesmo tempo os dons de conhecer
Que o mal é a vida, o natural possível,
E de querer o bem, inútil nível,
Que nunca assenta regular no ser?

Com que fria esquadria e vão compasso
Que invisível Geómetra regrou
As marés deste mar de mau sargaço –
O mundo fluído, com seu tempo e ‘spaço,
Que ninguém sabe como se criou?

Mas, seja como for, nesta descida
De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;
E o Bem, justiça espiritual da vida,
É perdida palavra, substituída
Por bens obscuros, fórmulas do acaso.

Que plano extinto, antes de conseguido,
Ficou só mundo, norma e desmazelo?
Mundo imperfeito, porque foi erguido?
Como acabá-lo, templo inconcluído,
Se nos falta o segredo com que erguê-lo?» 4

continua




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