PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO II
PESSOA E A VISÃO GNÓSTICA DO TEMPO II
autor : Armando Nascimento Rosa
Na metodologia conspiratória da(s) visão(ões) gnóstica(s) – na qual a consciência é uma emissária espoliada dos meios com que realizar uma missão já por ela esquecida -, a ansiedade varia consoante as vozes que a professam, apresentando uma sinusóide oscilante entre cepticismo e revelação íntima que vemos genialmente manifestada no percurso daquele que mistificou o seu eu mundano e socialmente reconhecível, procurando nas máscaras heteronímicas a resposta aos enigmas da esfinge. Mesmo nas derradeiras palavras que Pessoa parece ter escrito antes de morrer, perdura a dubitável certeza aos humanos reservada:
«I know not what tomorrow will bring.» 5
Em tradução literal, contra-gramatical: Eu sei não o que o amanhã trará. Uma frase em inglês classicizante que fez o infatigável Jorge de Sena espiolhar as obras de Shakespeare, com resultado infrutífero, pois convencera-se que o verso de adeus de Pessoa seria uma citação do autor que o poeta mais admirara. Interessa-nos aqui ler nessa frase o modo como o tempo e a busca do conhecimento se unem em gnóstica máxima: o amanhã da morte e a metamorfose que ela produzirá no sujeito que no ocaso da vida se interroga.
Mas neste «poeta animado pela filosofia, não um filósofo com faculdades poéticas» 6, como o Pessoa jovem a si próprio se identificou, não esperemos ver uma teoria articulada acerca da concepção do tempo. Por mais filosófica que seja a palavra pessoana, ela não se despoja dessa convicção poética ou, se preferirmos, estética, que sabe ser, em última análise, deveras fútil sustentar a unicidade de um sistema de pensamento, quando a realidade não se conforma e furta-se à rede desse mesmo sistema, de acordo com o que é dito na célebre frase que Hamlet dirige a Horácio e que consta, aliás, na epígrafe de um dos poucos ensaios filosóficos que Pessoa deu por terminado: Da Impossibilidade de uma Ciência do Léxicon. 7 Num aforismo seu, o poeta define, com a ironia que lhe conhecemos, a caução irracional inscrita no discurso filosófico:
«É inútil argumentar com qualquer filósofo pois a sua filosofia não depende do seu intelecto mas sim do seu carácter.» 8
Convicção esta agravada no seu caso em que o autor textual se auto-multiplica em caracteres, prolongando em si mesmo o estatuto da ficção. O processo da heteronímia pode ele mesmo ser perspectivado na modalidade de gnóstica paródia, que mimetiza em produção literária a demiurgia do cosmos que habitamos, cercados pela perpétua cortina do erro e da ilusão. Imaginemos o Pessoa ortónimo a representar o papel do demiurgo platónico, surgido no proto-gnóstico Timeu, e, à semelhança dele, delegando em criaturas por si geradas a concepção do mundo, neste caso, então, a escrita de textos que o poeta-pai, na sua olímpica e abstracta solidão, não seria capaz de moldar; visto que tais criaturas construirão ludicamente olhares específicos, provavelmente mais próximos dos seres profundamente incarnados, com eles partilhando o sentimento de inquietude e intentando por vezes ardis para o superar – como nos rostos distintos do naturalismo artificial de Caeiro e do epicurismo estóico de Reis (não suicidário como o é o racionalismo aporético do Barão de Teive, segundo Richard Zenith o mostrou), ou da sublime auto-comiseração ontológica de Campos. E na compreensão que Pessoa sabe demonstrar pelas agonias face à opaca promessa de mortalidade, especialmente por intermédio das máscaras de Campos e de Bernardo Soares, divisamos a sua missão de vate da miséria, ampliada por ser lúcida, da humana existência.
Existir, como o étimo latino o indica, implica o ser-se através do tempo, com um fim e um início, esse mesmo tempo que se esgota nas ampulhetas individuais que constituem a clepsidra arbitrária da História. Não é de surpreender, portanto, que as teses das filosofias do existencialismo, imanentistas/ateístas, do nosso século, de Heidegger a Camus e a Sartre – relativamente às quais se pode argumentar ser Pessoa um precursor e/ou um contemporâneo que poeticamente as ultrapassa, graças ao seu génio noético-literário e à sua hierologia provocatoriamente conscientizada – apresentem fortes analogias genéricas com o cósmico pessimismo gnóstico (por isso um Stuart Holroyd, na linha de Hans Jonas, chama gnosticismo secularizado ao existencialismo materialista do séc. XX). Tais teses são, contudo, pseudo-gnósticas porque carecem da dimensão de transcendência espiritual, inscrita no sujeito e no Deus longínquo; isto é, uma realidade metafísica que encoraja positivamente a deriva vivente do gnóstico – metafísica esta que se aloja no Pessoa ortónimo, polvilha-se em outros heterónimos, e está presente apenas por demonização nas máscaras de Campos.
No poema Natal, por exemplo, a gnose pessoana discorre em claridade e mistério, antecipando cronologicamente o conselho de um certo sábio Akkad, personagem do romance Monsieur or The Prince of Darkness, de Lawrence Durrell; Akkad representa na trama o adepto de uma seita gnóstica novecentista que transmite a sua mundividência aos protagonistas da narrativa, dizendo-lhes que, quando as palavras por ele proferidas começarem a fazer sentido nas suas mentes, eles deverão então «ou parar de falar ou tornarem-se poetas». 9
Pessoa seguira a segunda destas vias, para nosso gáudio de aprendizes seus neófitos. Mas nem as palavras camuflam o abismo da condição onde fomos despejados, como o sentido dos versos de Natal no-lo deixam perceber:
«Nasce um Deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.» 10
A primeira quadra ressuma uma amargura pelo politeísmo que sucumbe diante da emergência do éon histórico do cristianismo. Se há uma outra nova eternidade, mas era melhor a que passou, isso significa que o fluir temporal não augura progressos substanciais, projectado no futuro que anuncia. Aqui, a visão gnóstica do tempo consiste em afirmar o inelutável declínio gravado no próprio tempo em si: a Eternidade que temos, ainda que maiusculada, não releva senão do Erro, também maíusculo, e portanto é uma fraude ontológica. A ilusão deceptiva permanece na História a despeito da mutabilidade do zeitgeist. O niilismo pessimista de Pessoa – que Eduardo Lourenço situou algures entre Nietzsche e Beckett, dois autores quasi-gnósticos 11 – atinge neste poema uma altitude extrema, a começar no anti-hegelianismo da primeira estrofe, que abala toda a confiança em esperar que o tempo histórico esteja dotado de sentido evolutivo. Já a segunda quadra faz ruir alegoricamente os pilares comuns do saber experimental metódico e da crença cultual: a ciência é a cega a lavrar um campo inútil; a fé é a louca que habita um sonho. Ambas são súbditas de uma outra entidade movediça que é a linguagem simbólico-verbal; linguagem da qual o poeta extrai as palavras que usa, embora nelas observe o disfarce sofístico que as falseia numa aparência errónea e errante. Os deuses reduzem-se então a palavras e estas tudo ocultam quando julgamos descobrir-lhes as chaves semânticas.
continua
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