Estar Presente Valdenir Benedetti ¨in memoriam¨
Estar Presente>> Tenho observado a dificuldade constante que algumas pessoas têm para “estar aqui”, estar presentes. Tenho constatado principalmente em mim essa dificuldade.
Creio que esse foi um dos maiores obstáculos em minha história para que eu me conectasse com meu próprio crescimento.
Estou reconhecendo que quase sempre estive ausente, sempre estive em outro lugar qualquer, menos onde eu realmente estava. A mente divagando, indo para o futuro, mergulhando no passado, buscando referências lógicas, emocionais, surreais às vezes, qualquer coisa para que eu me ausentasse do momento a ser vivido, do lugar a ser de fato ocupado.
Estar presente ausente
Esse estado de “ausência” tornou-se um modo de vida, transformou-se na única realidade possível. O Eu ausente transformou-se com o tempo, na única coisa a ser reconhecida como o verdadeiro Eu.
Aprender sobre essa ausência foi, e continua sendo, uma tarefa áspera. Perceber o quanto sou incapaz de me sintonizar com o presente, com o momento vivido; o quanto é difícil ouvir os sons e vozes do lugar em que estamos; como é complicado se relacionar com o “outro”, sem me abstrair com meus próprios pensamentos, sem me deslumbrar com os sentimentos que transbordam.
Perceber que estar presente é muito difícil porque depende sempre de ter consciência do “outro”, reconhecer no “outro” tudo que existe em mim e que tantas vezes não quero ver, por isso a mente escorrega para labirintos lógicos ou para recantos obscuros que não tem talvez o menor vínculo com o que está acontecendo no presente.
Estar presente é viver fora do estado de ilusão
Todo esse processo de desviar o foco de atenção para algum lugar que não seja “aqui”, é necessário para alimentar a ilusão que foi construída ao longo do tempo a respeito de si próprio. Se eu me focalizar na realidade mesma do que está acontecendo, terei que reconhecer que talvez Eu não seja exatamente o que penso ser, o que espero ser. Perceber que talvez nós sejamos outra coisa diferente de tudo que aprendemos, tudo que construímos dentro de nós mesmos é muito forte, representa às vezes um processo de perder a identidade.
Acontece que essa “identidade” é, –em função da falta de conexão com a realidade–, totalmente falsa, artificial, construída com fragmentos de ideias que nem sempre nos pertencem, elaborada com dogmas, conceitos, verdades que talvez pertençam a outra realidade, a outras pessoas, e que não afinam com nosso coração, com nossa essência.
Perder a identidade, aquela, pode ser o caminho para encontrar a identidade.
Estar presente pode ser doloroso
O processo de estar presente se torna cada dia mais doloroso, na medida em que temos que tirar a roupa, tirar as vestes todas, ficarmos definitivamente nus das ilusões que nos acobertavam e aqueciam. Olhar-se no espelho do “outro” totalmente nu de preconceitos, justificativas e julgamentos é descobrir a própria identidade, é descobrir quem realmente somos, quem sou Eu.
Essa caminhada nada suave traz uma recompensa. Traz a consciência de si mesmo, traz a pessoa verdadeira à tona, traz a verdade para a superfície, nos transforma em pessoas de verdade, que é o primeiro passo para a evolução, provavelmente o princípio de um conhecimento maior, de uma conexão com a realidade divina.
Enquanto eu for um personagem forjado pela necessidade de dar significado à minha existência, dentro de um contexto ilusório, não posso de fato progredir. Estarei circulando em torno de mim mesmo, em torno de minhas ideias e das ideias que me foram destiladas pela vida, estarei voando aleatoriamente como mariposa em volta da luz, sem jamais poder ter um contato real com a Luz.
Estar presente é despir-se de um personagem
Despir-se do personagem que criamos, não significa abrir mão das defesas básicas, do instinto de sobrevivência; não significa também tornar-se anti-social ou alienado. O que acontece é que, na medida em que vamos nos desnudando de nossa história e nossos disfarces, e caminhando ao encontro de nossa essência, começamos a nos relacionar com o que é mais essencial no “outro”, estabelecemos uma relação mais verdadeira com o mundo que nos cerca, entramos em contato com a natureza real das coisas, nos tornamos pessoas reais.
Contam os árabes que Alah certo dia resolveu mudar todas as águas do mundo e, aquele que bebesse da nova água se esqueceria de sua porção divina, se esqueceria que era parte de Deus. Um único homem prestou atenção às palavras do profeta, que revelou a intenção de Alah, e foi até a fonte e encheu muitos barris de água, que escondeu em uma caverna que só ele conhecia. Veio um imenso diluvio que inundou toda a terra e lavou a água que existia, todas as águas foram trocadas e, cada um que bebia da nova água imediatamente se esquecia que era parte de Deus, se esquecia que era uma criatura divina, porque era filho da Divindade. O homem que ouviu o profeta não bebeu da nova água, ia todos os dias a seu esconderijo e bebia da velha água, aquela que não fazia esquecer, e ele era o único que sabia a verdade, o único que não havia esquecido quem ele era na verdade.
Depois de muito tempo, o homem que lembrava começou a se incomodar com a solidão, com o isolamento ao qual era submetido por todos os outros que não o compreendiam, não sabiam o que ou quem ele era na verdade. A pressão da solidão foi muito grande, a vontade de se relacionar, de trocar com as pessoas começou a imperar, e o homem acabou bebendo da nova água. Imediatamente se esqueceu de quem ele era e se tornou igual a todos os outros, e nesse dia houve uma grande festa para comemorar a milagrosa cura do louco que retornou de sua loucura, para o convívio dos homens de bem…
Estar presente é não beber da água do esquecimento
A questão é essa, bebermos da água que nos faz lembrar quem somos na verdade, aceitarmos quem somos, sermos nós mesmos em conexão com a natureza, em sintonia com as leis do universo, pode representar um movimento em direção à solidão e isolamento por parte de pessoas que nós amamos. Nos tornarmos nós mesmos pode representar sermos alvo de um julgamento duro e ácido de que nos alienamos, ou estamos com algum desequilíbrio, pois a referencia de todos será sempre o mundo ilusório dos personagens que cada um criou para sobreviver. Talvez por isso seja tão difícil optarmos por beber a velha água, e nos lembrarmos de nossa conexão com Deus.
Aquele que se despe de seus disfarces, que deleta o personagem conveniente, fica presente, se relaciona com o momento, com o agora, com o instante que está vivendo, e ai então percebe que não está só, que tem muitas pessoas fazendo isso, tem gente se despindo dos julgamentos e do medo de ser julgado e se posicionando no mundo, ficando presente.
Estar presente não é viver no isolamento
Não estamos sós. Aqueles de nós que estão atendendo ao apelo do Eu verdadeiro e se transformando e se libertando, encontram pelo caminho muitas pessoas que estão vivendo o mesmo processo, que também estão se desnudando da ilusão e procurando serem verdadeiras. Cada dia mais pessoas estão compreendendo que é necessário quebrar as regras que nos prendem a um mundo ilusório, que nos alienam de nós mesmos, que nos transformam em personagens e caricaturas de pessoas. A cada instante tem gente rompendo com acordos sociais compostos de infinitas cláusulas de certo e errado, e que foram celebrados sem nossa presença e sem nossa concordância, e que por isso, não temos que obedecê-los.
Dizem os xamãs e videntes Toltecas que no mundo material, o semelhante repele o semelhante como os pólos de um imã. Os opostos se atraem nesse universo. No plano transcendente, onde circulam forças espirituais, onde apenas a Luz e a verdade prevalecem, o semelhante atrai o semelhante e por isso, aqueles que se libertam da necessidade de serem aceitos de acordo com as regras dos outros, aqueles que se conectam consigo mesmos e com a Realidade, se sentem atraídos e se ligam e se unem com os que estão fazendo a mesma caminhada em direção à Luz.
Por isso não é preciso sofrer de solidão, não é preciso se apegar à formulas e comportamentos que nos dêem a ilusão de aceitação, não é necessário ter medo de estarmos separados do mundo, pois o mundo real está se apresentando para os que experimentaram o desapego, os que venceram o medo e ousaram ser eles mesmos.
Felizmente não estamos sós.
Vou complementar essas idéias com um saboroso e iluminado poema de Paulo Cesar Pinheiro:
SOLIDÃO
Eu sozinho sou mais forte
Minha alma mais atrevida
Não fujo nunca da vida
Nem tenho medo da morte
Eu sozinho de verdade
Encontro em mim minha essência
Não faço caso de ausência
E nem me incomoda a saudade
Eu sozinho em estado bruto.
Sou força que principia
Sou gerador de energia
De mim mesmo absoluto
Eu sozinho sou imenso
Não meço nunca o meu passo
Não penso nunca o que faço
E faço tudo que penso
Eu sozinho sou a esfinge
Pousada no meio do deserto
Que finge que sabe o que é certo
E sabe que é certo o que finge
Eu sozinho sou sereno
E diante imensidão
De toda esta solidão
O mundo fica pequeno
Eu sozinho eu meu caminho
Sou eu ,sou todos, sou tudo
E isto sem ter contudo
Jamais ficado sozinho.
créditos de imagem destacada marioduguay via Pinterest
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