Um psiquiatra negro frente ao racismo científico
Um psiquiatra negro
frente ao racismo científico
I – Um momento de transição:
Pode-se dizer que, de meados do século XIX até cerca de 1910, o país se definia prioritariamente pela raça. Isto é, as discussões sobre o caráter nacional e o futuro da nação passavam pela solução dos problemas atribuídos à miscigenação do povo brasileiro. A partir da década de 1910. E especialmente após o fim da Primeira Guerra Mundial. O movimento pelo saneamento rural do Brasil ganhou força. E se deslocou o foco para a doença ou as doenças dos brasileiros.
Um Brasil desconhecido seria revelado a partir de expedições de órgãos do governo. Como as de Cândido Rondon, do Mato Grosso ao Amazonas, em 1907 e 1908. E as expedições científicas de Oswaldo Cruz. Conquanto, a famosíssima frase do médico Miguel Pereira. “O Brasil é um imenso hospital”, dita em 1916, marcou o início deste movimento.
A exprobração à mestiçagem e ao nosso clima tropical cedeu lugar à condenação ao governo por abandonar as populações interioranas. Seu atraso inegavelmente passou a ser atribuído ao isolamento geográfico. E as infestações por doenças parasitárias, especialmente ancilostomose e doença de Chagas. Ao mesmo tempo, intensas campanhas sanitárias eram coordenadas por Oswaldo Cruz.
II – As intensas campanhas sanitárias:
Foram feitas então campanhas contra a febre amarela e contra a varíola, doenças que espantavam muitos visitantes e imigrantes do Brasil. A doença tornou-se a chave para a identificação do Brasil. E a higienização sua possibilidade de redenção.
A ciência, mais especificamente a medicina, tendeu, então, a se auto representar como norteadora do processo de definição da nacionalidade. E da modernização do país.
III – Juliano Moreira e sua história:
Juliano Moreira (1873-1933), baiano de Salvador, é frequentemente designado como fundador da disciplina psiquiátrica no Brasil. Decerto sua biografia justifica tal eleição. Como mestiço (mulato), de família pobre, extremamente precoce, ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 13 anos. Ainda graduando-se aos 18 anos (1891), com a tese “Sífilis maligna precoce”. Cinco anos depois, era professor substituto da seção de doenças nervosas e mentais da mesma escola.
De 1895 a 1902, frequentou cursos sobre doenças mentais. E visitou muitos asilos na Europa (Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Escócia).
Outrossim, de 1903 a 1930, no Rio de Janeiro, dirigiu o Hospício Nacional de Alienados. Neste, embora não fosse professor da Faculdade de Medicina do Rio, recebia internos para o ensino de psiquiatria. Aglutinou ao seu redor médicos que viriam a ser, eles também, organizadores ou fundadores na medicina brasileira.
IV – Fundando especialidades médicas:
E isto em diversas especialidades: neurologia, psiquiatria, clínica médica, patologia clínica, anatomia patológica, pediatria e medicina legal. Assim foi com Afrânio Peixoto, Antônio Austregésilo, Franco da Rocha, Ulisses Viana, Henrique Roxo, Fernandes Figueira, Miguel Pereira, Gustavo Riedel. E ainda Heitor Carrilho, entre tantos outros.
O contexto político e cultural de sua época deve ser considerado. Sobretudo quando se analisa a obra e a atuação de Juliano Moreira. Ele alinhou-se às correntes que então representavam a modernização teórica da psiquiatria e da prática asilar. Demonstrou isto em sua filiação à escola psicopatológica alemã. Foi também divulgador da obra de Kraepelin, nas mudanças que introduziu quando assumiu o Hospício Nacional de Alienados.
V – Mudanças realizadas por Juliano Moreira:
Como ele mesmo descreveu, foram estas as mudanças. A instalação de laboratórios de anatomia patológica e de bioquímica no hospital. A remodelação do corpo clínico, com entrada de psiquiatras/neurologistas. Além de outros especialistas (de clínica médica, pediatria, oftalmologia, ginecologia e odontologia). A abolição do uso de coletes e camisas de força. A retirada de grades de ferro das janelas. A preocupação com a formação dos enfermeiros. E ainda o grande cuidado com os registros administrativos, estatísticos e clínicos, entre outros.
Sua atuação institucional incluiu a organização da “Assistência aos Alienados”. E mais tarde o Serviço Nacional de Assistência aos Psicopatas. Tendo redigido, em 1903, uma proposta de reforma do Hospício Nacional. E insistido junto ao governo para a aprovação da legislação federal de assistência aos alienados, promulgada em 22/12/1903.
VI – Sua obra literária:
Sua extensa obra escrita abrangeu várias áreas de interesse. Primeiramente, publicou estudos nas áreas de sifiligrafia, dermatologia, infectologia e anatomia patológica. A seguir, concentrou-se cada vez mais nas doenças nervosas e mentais. Em descrições clínicas e terapêuticas. E escreveu sobre modelos assistenciais e sobre a legislação referente aos alienados. Ainda discutiu a nosografia psiquiátrica e estudou as histórias da medicina e da assistência psiquiátrica no Brasil.
Tinha especial interesse pela então chamada “psiquiatria comparada”. Ou seja, as manifestações das doenças mentais em culturas diversas, como atesta a sua correspondência com Emil Kraepelin.
Seu espírito aberto e inquieto não ignorou a psicanálise. E tendo domínio do alemão, conhecia as obras de Freud. Entretanto, tinha uma avaliação crítica delas. Numa resenha em que elogiou o livro de Franco da Rocha. “O pansexualismo na doutrina de Freud” (1920). Decerto referiu que a Sociedade Brasileira de Neurologia vinha promovendo palestras de divulgação da psicanálise. E comentou, com sua ironia peculiar, que esta era pouco conhecida no país. Porque “No Brasil, em geral os colegas, em obediência à lei do menor esforço, aguardam que as idéias e as doutrinas passem primeiro pelo filtro francês para que nos dignemos a olhá-las contra a luz (…)”.
VII – A medicina como modernizadora do país:
Enfim, é importante ressaltar que na atuação de Juliano Moreira deve-se recordar: Que nas primeiras décadas do século XX, a medicina brasileira acreditava ser capaz de dirigir o processo de modernização e sanitarização do país.
Assim também cria Juliano Moreira e sua atuação foi coerente com esta visão. Posto que para ele o principal papel da psiquiatria estava na profilaxia. Na promoção da higiene mental e da eugenia. Em que pese o caráter francamente intervencionista deste projeto médico. Não se pode negar o brilhantismo, a coragem e a originalidade deste fundador da psiquiatria brasileira.
Um afro abraço.
Claudia Vitalino.
Pesquisadora-Historiadora-Comissão estadual da verdade da escravidão negra – CTSPN/UNEGRO/Coordenadora do grupo de pesquisa do Instituto Perola Negra.
Fonte Lima NT, Hochman G. Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da primeira república. In: Maio MC, Santos RV, organizadores. Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1996. p.23-40.. Schwarcz LM. O espetáculo da miscigenação. In: O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras; 1993. p.11-22. Moreira J. Notícia sobre a evolução da assistência a alienados no Brasil (1905). Arq Bras Neuri Psiquiatr 1955; edição especial. Arquivos do Manicômio Judiciário do Rio De Janeiro – Professor Juliano Moreira. Arq do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro 1933; IV(1-2):3-20.
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