Criação dos AAA e a curiosa correspondência de Jung
Criação dos AAA e a curiosa correspondência de Jung
A CURIOSA CORRESPONDÊNCIA TROCADA ENTRE JUNG E BILL WILSON RELACIONADA À CRIAÇÃO DOS AAA
Estas cartas decerto, revelam os acontecimentos que levaram à criação dos AA – Fundação dos Alcoólicos Anônimos.
Na sua carta a C.G.Jung, Bill Wilson descreve a influência de Jung sobre o paciente Roland H., fundador dos A.A.A
Jung disse para Roland que não havia esperança de cura para seu caso e que somente uma conversão religiosa poderia afetar sua adição ao álcool.
Na sua resposta a Wilson, Jung enfatiza a dificuldade de falar sobre o significado espiritual do que é considerado uma doença.
Primeiros passos em direção à criação dos AAA
23 de janeiro de 1961
Caro Dr. Jung:
Há tempo devo-lhe esta carta de grande apreço. Deixe-me primeiro apresentar-me.
Sou Bil Wilson, co-fundador da Associação dos Alcoólicos Anônimos.
Embora o senhor certamente já tenha ouvido sobre nós, duvido que saiba que uma certa conversa que teve com um de seus pacientes.
Trata-se do Sr. Roland H. no início dos anos 30, e que contudo, teve um papel central na fundação de nossa associação.
Nossa lembrança das declarações de Roland H. sobre essa experiência é a seguinte:
Em 1931, Roland após ter esgotado todos os meios de recuperação de seu alcoolismo, tornou-se seu paciente. (…)
Certo de que o senhor era sua última corte de apelação, ele procurou seus cuidados.
Segue-se então a conversa entre vocês (…)
Minha lembrança do que ele contou dessa conversa foi a seguinte: acima de tudo, o senhor lhe afirmou francamente, que não tinha esperança, no caso dele, quanto a eficácia do tratamento médico ou psiquiátrico.
A criação dos AAA graças à sinceridade de Jung
Essa sua afirmativa ingênua e humilde foi sem dúvidas a primeira pedra fundamental sobre a qual nossa associação se ergueu.
Vindo do senhor, alguém em que ele tanto confiava e admirava, o impacto foi imenso.
Quando ele lhe perguntou se havia qualquer outra esperança, o senhor lhe disse que havia uma, caso ele pudesse se submeter a uma experiência espiritual ou religiosa, em síntese, experimentar uma conversão religiosa.
O senhor lhe mostrou como tal experiência, se ele conseguisse, poderia motivá-lo novamente, quando todo o resto falhasse.
Mas, o senhor o alertou que embora tais experiências tivessem recuperado alguns alcoólicos, elas eram, entretanto, raras.
E também recomendou que ele se colocasse numa atmosfera religiosa e esperasse pelo melhor.
Logo após, o Sr. H entrou para o Grupo Oxford, um movimento evangélico (…)
Nesse ambiente, Roland H. encontrou uma conversão espiritual que o liberou na época da compulsão a bebidas (…)
Em 1932-1934 o Grupo Oxford já havia tornado sóbrios um certo número de alcoólicos, e Roland, sentindo que podia especialmente se identificar com esses sofredores, resolveu ajudar ainda outros.
Acontece que um desses era um antigo colega meu, chamado de Edwin T.
(…)
Enquanto isso, eu continuava alcoólico e fui internado
(…)
Ouvindo sobre minha sina meu amigo Edwin veio me visitar em casa onde eu estava bebendo.
Estávamos em novembro de 1934. Há tempo eu havia considerado meu amigo Edwin como um caso sem esperanças….
Entretanto, lá estava ele, num estado evidente de “liberação”, o qual sem dúvidas não podia ser devido a sua simples associação com o grupo Oxford (…)
Novamente voltei aos cuidados do Dr.Silkwood (…) Limpo mais uma vez do álcool, eu me achei terrivelmente deprimido.
Isso deveria ser a minha inabilidade de ter a menor fé.
Em seguida gritei: “Se houver um Deus, ele se revelará”.
Então, imediatamente, surgiu uma iluminação de enorme impacto e grande dimensão, alguma coisa que descrevo no livro “Alcoólicos Anônimos”que estou enviando.
Minha liberação do álcool foi imediata. Num momento, soube que eu era um homem livre.
Logo após minha experiência, meu amigo Edwin veio ao hospital trazendo-me uma cópia do livro “Variedades da Experiência Religiosa” de William James.
Este livro me mostrou que a maioria das experiências de conversão, qualquer que seja o seu tipo, tem um denominador comum: o colapso profundo do ego.
O indivíduo se depara com um dilema impossível. (…)
Junto com meu despertar espiritual, surgiu uma visão de uma associação de alcoólicos, cada um identificando-se com o outro, e transmitindo sua experiência para o próximo, em cadeia.
(…) Este conceito tornou-se o fundamento do sucesso dos alcoólicos anônimos(…)
Muitos AAs conscientes são estudantes de seus livros.
Devido à sua convicção de que o homem é algo mais do que intelecto, emoção e dois dólares de produtos químicos, o senhor tornou-se especialmente precioso para todos nós.
Por favor, esteja seguro de que seu lugar no afeto e na história de nossa associação é único.
Com gratidão, William G. Wilson.
a resposta de Jung
30 de janeiro de 1961
Caro Sr. Wilson:
Sua carta foi realmente muito bem recebida. Eu não tive mais notícias do Sr. Roland e freqüentemente me perguntava sobre seu destino.
Numa conversa que ele adequadamente relatou ao senhor, houve um aspecto do qual ele não sabia.
A razão pela qual não pude dizer-lhe tudo foi que, naqueles dias, eu tinha que ser extremamente cuidadoso com o que dizia.
Eu verifiquei que fui mal compreendido das mais variadas formas.
Assim, fui muito cuidadoso quando falei com Roland H. Mas o que eu realmente pensava do assunto era o resultado de muitas experiências com homens desse tipo.
Seu anelo pelo álcool era o equivalente, num nível inferior, ao espírito de sede de nosso ser pela totalidade, na linguagem medieval: a união com Deus.
Como se pode formular tal insight numa linguagem que não seja mal compreendida nos nossos dias?
O único meio real e legítimo para tal experiência é que ela ocorre na realidade e só pode ocorrer-lhe quando você está andando num caminho que o leva a um entendimento superior.
Você pode ser levado a essa meta por um estado de graça, ou através de um contato honesto e pessoal com amigos, ou através de uma educação mais elevada da mente, que vai além dos confins do mero racionalismo.
Eu vejo pela sua carta que Roland H. escolheu o segundo meio, que era, sob as circunstâncias, obviamente o melhor.
Estou firmemente convencido que o princípio do mal, prevalecendo neste mundo, leva a necessidade espiritual não reconhecida à perdição, se ele não for contrabalanceado, seja por um insight religioso real, ou pela parede protetora da comunidade humana.
Um homem comum, que não seja protegido por uma ação proveniente de cima e que esteja isolado na sociedade, não pode resistir ao poder do mal, que é muito adequadamente chamado de Diabo.
Mas o uso destas palavras desperta tantos erros que só podemos nos manter afastados delas o mais possível.
Essas são as razões pelas quais não pude dar uma explicação suficientemente completa a Roland H.
Mas eu estou arriscando com o senhor pois concluo, a partir de sua carta, muito decente e honesta, que o senhor adquiriu um ponto de vista acima dos enganosos chavões que se escutam habitualmente sobre alcoolismo.
Veja “álcool “em latim é spiritus, e se usa a mesma palavra para a experiência religiosa mais elevada assim como para o mais perverso veneno.
A fórmula auxiliadora é, pois, spiritus contra spiritum. Agradecendo novamente sua amável carta,
Sinceramente,
C.G.Jung
OBS:
Essa foi uma matéria publicada na Revista Junguiana, que estou publicando pois considero uma maravilhosa advertência para todos nós profissionais que lidamos com o homem, de que mais importante do que sermos capazes de fazer um diagnóstico preciso, é sermos capazes de, com amor, oferecermos a possibilidade da cura.
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