Carta aberta a um ex-amigo perdido para o fascismo fácil e corrosivo de cada dia

Carta aberta a um ex-amigo perdido para o fascismo fácil e corrosivo de cada dia

Cara, eu gostava mesmo de você; tinha-lhe na cota de irmão.

Passamos momentos inesquecíveis juntos, na infância, na adolescência, no começo da vida adulta.

Aprontamos, fizemos burradas, realizamos coisas incríveis – e sempre estávamos juntos.

Mas agora, justo agora que seria o momento de olharmos pra trás e rirmos de tantas memoráveis memórias, nos distanciamos e nada disso parece mais ter graça alguma.

É que hoje vejo semeado um abismo entre nós.

E essa nossa distancia não foi construída de uma só vez; é resultado paulatino e cotidiano de cada comentário retrógrado que você fazia, de cada babaquice machista, homofóbica, preconceituosa e alienada que você cometia, de cada perdigoto raivoso que saia lépido de sua boca nervosa e ávida por agredir minorias e desvalidos e por defender burgueses e opressores.

Até que assim, de tranco em tranco, chegamos à data de hoje, na qual não posso – nem quero – mais lhe chamar de amigo.

E sem achar isso um problema, muito pelo contrário.

Problema de verdade seria seguir a seu lado, nós que rumamos para posições ideológicas opostas, para campos de visão de vida antagônicos, para modos de entender as coisas completamente distintos.

Não nego que é triste e muito melancólico perceber que aquele coração enorme e aquele cara tão bacana se transformaram em uma personalidade fria e egoísta. Em resumo: você se transfigurou em um fascista – seja por falta de informação, seja por influência midiática, pela razão que for.

Razões e motivações pouco me importam: eu não quero mais saber de você; e isso não significa, em absoluto, qualquer tipo de intolerância de minha parte – ser tolerante passa por não tolerar a intolerância.

Comigo fascismo não se cria, nem se perdoa; fascismo simplesmente se destrói.

E não, não adianta me chamar de prepotente, pois eu não me acho melhor que você.

Você é que se transformou voluntariamente em alguém (muito) pior do que eu.

E pior a ponto de nossa distancia ser fisiologicamente necessária, a ponto de eu somente enxergar a possibilidade de um mundo melhor quando os princípios insalubres que você defende forem extintos.

Talvez você se pergunte: e aquele nosso passado conjunto, cheio de companheirismo e amizade? Eu respondo: se tornou uma sombra distante e desfocada de um tempo em que simplesmente existíamos sem refletir sobre nosso papel social e, em especial, sem preocupação com os outros – estes outros que hoje você sectariamente chama de vagabundos e eu solidariamente chamo de companheiros.

Não lhe desejo mal, mas não por benevolência: é que isso não me faria bem. Deixo o ódio pra você, que tem sempre o estoque cheio.

Desejo tão-somente que seu exemplo não se multiplique e que meus filhos não tenham que passar por decepções como a que tive com você.

Porque agora você jaz, ainda que vivo, em meu cemitério metafísico particular, sepultado junto dos bons momentos que tivemos e ao lado de tantos outros reacionários mortos-vivos.

E de nossa história restou somente o aprendizado: amizades verdadeiras não são construídas com sorrisos fáceis e algum grau de companheirismo, mas sim através de afinidades duradouras.

Porque nenhuma amizade de verdade – como era a nossa –
resiste ao fascismo brutal de cada dia.

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Alexandre Périgo

Mais um em meio à multidão. alexandreperigo@uol.com.br

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