Dormindo com o Inimigo

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“Esta tem sido minha experiência: quando
escolher um amigo não é necessário ser muito
cauteloso, qualquer um pode sê-lo, mas
quando escolher um inimigo, tem que ser
muito cauteloso; o inimigo tem que ser
alguém com as melhores qualidades possíveis,
porque você vai lutar com ele e cada vez que
lutas com alguém, lenta, lentamente te tornas
exatamente igual a teu inimigo…”
Osho

Dormindo com o Inimigo – A Busca do Outro

Os olhares buscam. O tempo todo, buscam.

Percorrem caminhos, deslizam pelas encostas das colinas, invadem os espaços e mergulham nas transparentes piscinas de outros olhares.

Sempre buscando, sempre procurando.

Um mestre do olhar, Pablo Picasso, disse: “Eu não procuro, encontro”.

Quem sabe ele nos ofereceu uma chave para o mistério do olhar? Talvez não estejamos procurando por nada, apenas encontrando.

Mesmo assim, encontrando ou procurando, nosso olhar é uma espada que nos precede sempre, um instrumento de conexão com o mundo.

Pode ser uma espátula que molda o tecido da realidade e distribui suas cores e suas formas, tornando o mundo coerente aos nossos sentidos, e ainda,  transformando a realidade em uma experiência compatível com nossas expectativas mais secretas.

Nesse movimento intenso e constante do olhar, mesmo dos olhares mais baços ou os mais luminosos, encontramos algo muito especial, uma entidade viva na qual nos espelhamos e que desperta o sentimento de que existimos de fato.

O olhar se depara com o “outro”, e nesse momento sabemos estar vivos, sabemos que nunca estivemos sós.

O “outro” pode ser qualquer pessoa, pode ser até um fantasma, fogo-fátuo de nossas esperanças.

Pode ser uma criança, uma mulher desconhecida, um velho atravessando a rua, um catador de papel, um garçom sonolento, assim como um amigo querido, ou a mulher amada, ou o homem amado.

O olhar absorve o reflexo da luz e nos informa da existência física do “outro”, e nesse momento especial, tudo faz sentido, nossa existência faz sentido, a vida faz sentido.

Não sei se esperamos encontrar uma resposta ou uma nova pergunta nessa busca constante do olhar.

Contudo,  alguma coisa além de nós mesmos está em nossos planos, sejam eles objetivos ou não, talvez um sinal, uma referencia qualquer sobre algo que não sabemos bem o que é.

Assim como quando surge aquela sensação de que perdemos algo em casa e vasculhamos todas as gavetas sem ao menos saber o que estamos procurando.

Tantas vezes encontramos coisas inusitadas, objetos dos quais nem lembrávamos a existência.

O mesmo acontece nesse movimento dos olhos, radares percorrendo horizontes, podemos encontrar coisas que não esperávamos. Também  podemos nos deparar com algo que precisávamos e nem ao menos fazíamos idéia de sua existência.

Podemos encontrar o nosso inimigo!

Identificamos imediatamente esse inimigo.

Podemos até não saber que ele tem esse papel, podemos nos confundir, podemos não querer reconhecer essa qualidade quando nosso olhar se depara com essa mítica figura, mas alguma coisa em nosso ser vibra, ressoa, sabe quem ele é, e nesse momento precisamos começar a agir.

Pode ser até que nos apaixonemos!

Talvez um arrepio nos percorra a espinha, alguma tontura, reação intensa e angustiante, suor, perplexidade.

Mas o sentimento mais forte nesse instante, reconhecido pelos mais atentos e sensíveis, é o da inevitabilidade.

E assim, um novo processo se inicia em nossa vida, uma nova onda, uma nova dança. Percebemos que o destino se apresenta com toda sua força e a semente de uma nova etapa se rompe e começa a brotar em nosso espírito, em nossa mente.

E tudo começa com o olhar…

Dormindo com o Inimigo – QUEM É O INIMIGO?

Em um primeiro momento, identificamos o inimigo como uma entidade exterior.

Não é necessariamente alguém que se opõe a nossos desejos e sentimentos, alguém que nos confronte.

Simplesmente o inimigo nos desafia, nos instiga, nos exige o gesto objetivo, a ação concreta, seja para nos defendermos, seja para atacarmos algo que nos incomoda e parece destoar de nosso universo.

Pode ser a pessoa amada, um novo amor, e nesse caso, sentimos um constante e paradoxal misto de atração e repulsa, de vontade de mergulhar e se entregar ao sentimento e ao relacionamento e simultânea – e secreta – necessidade de fugir correndo daquele sentimento e daquela pessoa.

A pessoa amada, aquela mesma que o destino nos apresentou, que nosso olhar encontrou e que despertou estranhas vibrações em nosso ser.  Decerto ela mesma, aquela pessoa que veio como mensageira da nossa transformação, assim como da nossa morte e renascimento.

Portanto, aquela mesma pessoa que desperta o sentimento de amor em nós, e a alegria de saber que a vida vale a pena naquele instante. Porém… ela pode ser nossa inimiga, a numero um do despertar da nossa consciência, a agente de nossa maior transformação, e tudo isso submerso no mais delicioso sentimento de plenitude e conexão com o infinito.

O eixo astrológico que tem no Ascendente a representação de nosso projeto de vida, da finalidade maior de nossa existência nesse plano físico, onde estão contidos os recursos com que a natureza nos dotou para cumprirmos nosso destino, vai encontrar no Descendente, na Casa VII, sua complementaridade.

É lá, na Casa VII, com o perfil do signo e dos planetas ali contidos, que nos deparamos com a projeção de nossas expectativas.

Encontramos aqueles que servem de complemento à nossa existência, o cenário onde vamos contracenar com os “outros”.

O tipo de energia e o tipo de pessoa que acreditamos servirem para nos trazer o sentimento de inteireza e plenitude.

Por isso surge o desejo, a necessidade de se unir a essa ou essas pessoas e pode acontecer até mesmo um sentimento que costumamos chamar de amor.

A Casa VII do horóscopo, tradicionalmente, simboliza o campo de projeção psíquica onde identificamos nosso oposto complementar.

Nada mais do que aqueles com quem podemos nos associar e que fornecerão subsídios para a realização do nosso projeto de vida.

São pessoas que representam a possibilidade de acontecer associações, em todos os níveis que essa palavra possa indicar, amorosamente ou profissionalmente, entre outros.

Acontece que essa Casa Terrestre também simboliza aquilo que a Astrologia tradicional denomina “inimigos declarados”. Por conseguinte, são exatamente as pessoas que nos confrontam e que nos fazem lutar ou ficar na defensiva.

Podemos dizer, a partir da observação cuidadosa do comportamento de muitas pessoas, entre as quais me incluo que, tanto os inimigos quanto os associados, representados pelo signo Descendente, o planeta regente desse signo, os planetas eventualmente ali contidos, podem ser na verdade duas faces da mesma moeda, dois aspectos do mesmo ser.

A pessoa amada, como estávamos observando, pode ser o inimigo que vai nos tirar da estagnação e revolucionar nossa existência.

Assim como o sócio, o parceiro de algum projeto, pode ser o complemento ideal para o desenvolvimento desse projeto, mas pode ser um poderoso inimigo que vai nos fazer perceber nossos limites e ativar o uso de recursos internos que até então estavam adormecidos, como compete a um inimigo valoroso.

O Osho inclusive, recomenda um certo cuidado na escolha do inimigo:

“… Nunca escolha um inimigo equivocado, desse modo, mesmo na vitória serás derrotado, porque terás que escolher as mesmas estratégias, as mesmas astúcias de teu inimigo, de outro modo, não podes lutar com ele…
…Escolhe um inimigo sábio e, para lutar, terás que ser sábio.
Escolhe um inimigo inteligente, porque para lutar com ele terás que ser inteligente.
Escolhe a teu inimigo recordando perfeitamente que, lutando com ele te tornarás igual a ele.”

Estamos sugerindo que, qualquer pessoa à qual nos associemos, amorosamente ou socialmente, e em quem encontramos uma complementaridade ao nosso projeto de vida, tanto pode ser o ideal de plenitude relacional quanto pode ser o mais poderoso inimigo.

O que podemos fazer então?

Como nos entregarmos a um amor ou estabelecermos uma sociedade se a pessoa com a qual estamos assumindo algum tipo de compromisso pode ser o inimigo que vai perturbar nossa paz, que vai fazer marola nas águas calmas de nossa vida, que vai nos tirar do eixo e nos obrigar a tomar novas atitudes e até mesmo mudar de direção na vida?

Será que o mais adequado é não se comprometer, não se entregar a nenhum relacionamento amoroso, não confiar em nenhuma parceria, fazer tudo sozinho sem contar com ninguém?

Será que o melhor é não confiar nos outros, não contar com eles?

Será possível viver assim?

Creio que não.

Não podemos viver sem o inimigo.

Decerto precisamos dele para que nossa vida não seja um poço de água estagnada.

Precisamos do inimigo para que a energia vital flua e se recicle, para que os desafios que ele apresenta nos fortaleçam, para que as qualidades, os valores que existem em nós se apresentem e cumpram sua função maior.

Não podemos viver sem o inimigo porque sem ele não conheceremos o amor.

O amor não acontecerá em nossas vidas, exatamente porque é nos olhos de nosso amado, de nossa amada que encontraremos os maiores desafios a serem enfrentados, os mais profundos abismos a serem transpostos, a mais ofuscante luz a nos iluminar e a mais densa escuridão a ser atravessada.

D. Juan apresenta, através dos textos de Carlos Castaneda, o conceito de “pequenos tiranos”, que são aquelas pessoas que nos infernizam a vida, nos torturam, representam inimigos que temos que combater durante muito tempo, e que no fim das contas, são as pessoas que nos motivam a encontrar nosso caminho, a descobrir nossos talentos, nossa força, nosso poder.

A ideia é inspirada nos invasores espanhois que oprimiam os indios na época do descobrimento.

Porém,  atualizando o conceito, os pequenos tiranos são as pessoas com as quais convivemos e que atormentam nossas vidas.

Tanto são os chefes tiranos, como as esposas e maridos tiranos, filhos tiranos.

Por certo, estamos cercados por pessoas assim, e temos que tirar proveito da oportunidade que nos oferecem de crescermos e conhecermos qualidades que só podem aflorar a partir do confronto que é exigido por essas pessoas. Inclusive o medo, o primeiro inimigo do homem de conhecimento, de acordo com D. Juan, é vencido quando conseguimos enfrentar e vencer o pequeno tirano que atormenta nossa vida, e a partir daí, esse inimigo, o medo, jamais poderá nos dominar novamente.
Devemos lembrar sempre que cada “pequeno tirano” que aparece, só pode vir até nós por um caminho que nós mesmos abrimos. A porta que permite sua entrada só pode ser aberta pelo lado de dentro. A tirania e perversidade de cada um dos tiranos que nos desafiam precisa existir potencialmente dentro de nós mesmos. Esses personagens precisam de um registro, de um modelo energético para se identificarem e poderem entrar em sintonia com a gente, são também inimigos que habitam nosso ser e por isso os encontramos fora de nós.
Na medida em que vamos ampliando nossa consciência, reconhecendo e enfrentando os inimigos que habitam nosso ser, eles não precisam mais aparecer como pessoas fora de nós, e podem apostar que a vida fica bem mais fácil assim.
O que não podemos fazer é aceitar sermos vítimas desse inimigo. Não podemos nos entregar a ele passivamente. Não podemos permitir que nossos inimigos sejam maiores que nós, nos dominem, nos façam sair do eixo, perder o rumo, perder a concentração, sejam eles pessoas amadas, sócios ou gente que simplesmente nos atormenta. Por isso mesmo aqueles que incorporam a figura do inimigo para nós devem ser um estímulo ao nosso crescimento, à expansão de nossa consciência, para que jamais sejamos dominados por eles, e no momento em que tivermos a percepção de nosso controle da situação, podemos ingressar em outro nível de compreensão do que é ou pode ser o inimigo, o mais poderoso de todos, aquele que pode de fato nos destruir, aquele que está dentro de nós, habita nosso ser.

Dormindo com o Inimigo – O INIMIGO INTERIOR

Na verdade, estamos sugerindo que o inimigo está dentro de nós mesmos, muito antes de que possamos encontra-lo nas outras pessoas com quem nos relacionemos.
A Casa VII, que representa os associados e os inimigos declarados, é na verdade um campo de projeção psíquica onde focalizamos nossas expectativas de complementaridade. Buscamos ali aquilo que nos falta e supostamente nos completa. Acreditamos que nesse território simbólico encontraremos nossa “cara metade”, nossa alma gêmea, nosso “duplo”, aquela ou aquelas pessoas que estão destinadas a compartilhar o que temos de melhor e o que temos de pior, e caminhar juntos em direção ao infinito.
Talvez não seja bem assim…
Na verdade, não encontraremos ninguém na Casa VII além de nós mesmos!
O sentimento de “incompletude” que nos é impingido pela sociedade e que permeia a maioria dos momentos de nossa vida, que faz com que pareça estar sempre faltando algo, como se fossemos pássaros de asas partidas, vendo todo tempo o bando emigrar para terras distantes e nós sempre ficando para trás, possuídos pela solidão, invadidos pela solidão.
Por isso o olhar vasculhando tudo, percorrendo tudo, em busca de algo que não sabemos o que é, ou que preferimos não saber o que é…
A “separatividade” é a idéia de que somos seres divididos interiormente e separados uns dos outros, como uma condição, como um castigo arquetípico pelo assassinato de Abel, como a única verdade aceitável nesse plano, e é fundamental para a manutenção do estado de coisas do mundo atual.
Se e quando um ser humano reconhece sua conexão com todos os outros seres, e para isso o caminho é a constatação de sua inteireza, o reconhecimento de que ele é um ser completo e pronto para cumprir seu destino e realizar seu papel de cidadão do universo, ele não pode mais ser controlado, ele não pode ser manipulado pelas corporações a quem isso pode interessar, ele não pode mais ser seduzido por tantas instituições que só conseguem sobreviver às custas de pessoas inseguras e carentes, e esse ser que constata sua plenitude, não pode mais ser iludido por grande parte da mídia, exatamente aquela que cumpre o papel simbólico de Mefistófeles, o mensageiro que veio comprar a alma de Fausto em troca de algumas ilusões.
Se prestar atenção de verdade, chegará o momento em que o indivíduo perceberá que estamos todos conectados, que estamos todos ligados uns aos outros, como células de um mesmo corpo, como partículas de uma mesma entidade. Saberá então que não está só, que é uma pessoa completa, inteira, e que o “outro” é na verdade uma referencia para sua existência e um agente para seu crescimento, e que a energia pode ser trocada, somada, vivenciada no contato com o outro para alimentar e recriar a realidade possível. A solidão perde totalmente o sentido nesse caso, mas é bem difícil para a maioria de nós, com o rigor do condicionamento que nos é imposto desde o dia em que nascemos, acreditar nisso tudo, acreditar que não estamos sós, acreditar que somos seres inteiros e plenos, acreditar que temos dentro de nós tudo que precisamos e, principalmente, acreditar que somos livres.
Acontece que precisamos do espelho para atestar nossa existência, nossa personalidade, e o “outro” é esse espelho, cada um de nós é espelho da realidade de outra pessoa. Para mim essa afirmação tem a qualidade de um fato. A função de refletir a existência do “outro”, própria dos espelhos, é uma das características operacionais da casa VII, o Descendente.
Todos os pontos do horóscopo representam conteúdos, qualidades, potencialidades do indivíduo ao qual o horóscopo se refere. Com a sétima casa não poderia ser diferente. Todas as pessoas tradicionalmente simbolizadas pelas casas são conteúdos do horóscopo individual, da cartografia da psique representada por esse horóscopo, existem como potencialidades dentro desse ser antes de se materializarem e se tornarem visíveis fora dele.
No caso particular do eixo que compreende a primeira e a sétima casa do horóscopo, o Ascendente e o Descendente, identificamos o fluxo e refluxo da energia vital, a energia manifestada do “self”, a energia essencial que flui enquanto estamos caminhando através da vida, que percorre todos os espaços e se dirige aos confins do universo, até o momento em que retorna para nós e acrescenta conhecimento ao nosso ser, exatamente como as ondas provocadas por uma pedra atirada na água, que fluem até a margem e voltam para o centro de onde emanaram. A partir do Ascendente, o movimento da energia vital pode encontrar sua referencia e ponto de retorno em outra pessoa, na projeção de uma expectativa que criamos a partir da configuração da sétima casa, ou a partir da consciência de que o que esperamos encontrar fora de nós, o “outro”, é na verdade um complemento que existe naturalmente dentro de nós mesmos. Nesse caso, a energia flui do consciente para o inconsciente, e retorna para o consciente, possibilitando uma ampliação da consciência e da possibilidade de estabelecermos uma relação cada vez mais sólida e rica com a realidade.
A idéia de que só posso identificar e reconhecer no “outro” aquilo que está dentro de meu campo de consciência é uma idéia razoável e bastante provável. Como pode existir de fato alguma coisa que não consigo identificar ou pensar ou descrever? E se consigo pensar e reconhecer essa coisa, é porque de alguma forma, mesmo que toscamente, ela existe basicamente dentro de mim. O que não está de alguma forma dentro do “perímetro” de minha consciência, talvez não exista para mim.
A partir dessa reflexão podemos concluir que o espelho que simboliza as outras pessoas em nossa vida, e mais ainda, o complemento que elas representam, seja no formato de um grande amor, um encontro cósmico, uma simples sociedade ou parceria, seja através do inimigo, o pequeno tirano, enfim, aquilo que identificamos e reconhecemos nas outras pessoas já existe dentro de nós. Talvez uma semente, talvez um embrião, talvez uma estrutura complexa, composta por pensamentos e vivências, mas em síntese, as pessoas com quem nos confrontamos ou nos associamos já existem como um princípio energético, um símbolo, um arquétipo dentro de cada um de nós.
A frase de Herman Hesse : “Quando se odeia alguém, odeia-se algo nele que é parte de nós mesmos. O que não está em nós não nos atrapalha.” pode também ser adaptada ao amor em vez de ódio, tanto faz. Qualquer sentimento que envolva outra pessoa tem necessariamente que se basear em algo que existe dentro de nós mesmos. Não consigo perceber de outra forma. Alguém consegue?
Por isso, podemos afirmar que o inimigo está dentro de nós, e que esse inimigo, o mesmo que nos transforma e nos faz crescer com seu desafio, pode ser a pessoa que mais amamos nessa vida, pode ser o companheiro que nos auxiliou a vencer, pode ser nosso irmão, nosso filho, nosso pai, mas sempre será um pedaço de nós mesmos, sempre será a materialização de uma expectativa, sempre será o objeto criado pela necessidade de nossa própria evolução.

Dormindo com o Inimigo – COMO VENCER O INIMIGO

Em uma passagem descrita por Carlos Castaneda em seus livros, ele pergunta a D. Juan: “de que adianta ser um homem de conhecimento se, por exemplo, estiver um inimigo com um rifle, de tocaia, para mata-lo no caminho em que você vai para a feira todas as semanas?”. Como D. Juan não gosta de metáforas e hipóteses, se recusa a responder como um homem de conhecimento pode se livrar dessa situação, mas diante da insistência de Castaneda, acaba respondendo: “se um assassino estiver de tocaia no caminho por onde deve passar o homem de conhecimento para ir à cidade, querendo mata-lo, como ele é um homem de conhecimento, naquele dia ele simplesmente não passará por lá…”.
Na verdade, não podemos vencer o inimigo, ou melhor, não podemos destruir o inimigo. Só podemos absorve-lo, reconhecer que ele é parte de nós, torna-lo nosso cúmplice e nosso aliado.
Quantas vezes em nossas vidas vivemos relacionamentos que são absolutamente marcantes, deixam cicatrizes no corpo e na alma, deixam lembranças doces e amargas, todas intensas, deixam saudades e dores que parecem eternas. Por algum tempo essas relações, não necessariamente amorosas, perturbam nossas vidas, se apossam de nossos pensamentos durante todo dia, todo tempo, até que termina seu tempo e elas acabam, às vezes dolorosamente, outras vezes com um imenso alívio.
Em cada gesto que fazemos a partir desse momento, o objeto de nosso afeto ou de nossa associação se apresenta como uma ausência que chega a ser palpável. Quando viramos para um lado, esbarramos no vácuo gelado da ausência. Quando aguçamos os ouvidos, percebemos misturados aos os sons do cotidiano, os ruídos que representavam aquela convivência, a musica, os rumores. O cheiro dos momentos se insinua em todos os lugares. Algumas vezes reconhecemos em um olhar repentino, no movimento dos cabelos, no balanço do andar, a impressão da pessoa que se foi, e nosso corpo reage com palpitação e outras reações que chamam a atenção e tiram nossa concentração. Esse estado de espírito tende a se prolongar por algum tempo, e em muitos casos, por uma vida inteira.
O inimigo continua nos desafiando. O inimigo continua nos atormentando. O inimigo está nos tiranizando mesmo quando pensávamos ter nos libertado dele. O inimigo continua dentro de nós.
Sentimos uma dolorosa saudade do inimigo!
Quanto maior a saudade, quando mais falta sentimos do inimigo, mais importante ele é ou foi para nossa evolução.
O inimigo sempre viverá dentro de nós, porque ele faz parte de nosso ser, ele representa uma parte de nós que necessita ser vivida, confrontada, absorvida, conscientizada. Por algum tempo nos iludimos acreditando que ele principia fora de nós, procurando ele em outras pessoas, até o dia em que reconhecemos sua existência, reconhecemos esse inimigo como um fato interno, como um componente de nosso ser, e nesse momento nossa consciência se expande e ingressamos em outra dimensão da existência.
Para que o inimigo se torne nosso aliado é necessário ama-lo.
Até mesmo o mais perverso tirano precisa ser amado, pois assim seu poder será anulado, e com essa atitude desenvolveremos a capacidade de amar mais intensamente e estaremos mais plenamente conectados ao universo.
Para conseguir amar um inimigo é preciso primeiro reconhecer seu valor, sua importância; em seguida é necessário admitir que esse inimigo só existe em nossa vida porque permitimos que isso aconteça, escolhemos passar por aquele lugar onde está o inimigo de tocaia naquele dia, como diria o D. Juan. É importante também aproveitar o momento em que identificamos o inimigo para mergulhar dentro de si mesmo, percorrer os mais obscuros caminhos da mente para localizarmos a origem desse inimigo, descobrir onde ele se esconde dentro de nós, qual é sua característica em nosso ser, porque certamente ele existe dentro de nós para poder acontecer fora de nós.
Quando criticamos alguém, quando somos incomodados pelos pequenos ou grandes tiranos do cotidiano, quando a pessoa com quem estamos associados, amorosamente ou socialmente nos perturba, nos deixa irritados, é o momento de pensar se essas pessoas que julgamos serem nossos amigos, nossos amados, não seriam por acaso verdadeiros e preciosos inimigos que escolhemos?
Quando paramos de criticar e começamos a examinar a atitude dos que nos incomodam, e nos esforçamos para localizar dentro de nós o espaço, o lugar onde se encontra a referencia para que essas pessoas pudessem chegar até nós, fazer parte de nossas vidas, nesse momento passamos a compreender a atitude delas, e a partir dai, se revela também uma parte de nós que permanecia oculta pelas sombras, coisas que não queríamos ou não podíamos perceber. Através desse exame e desse confronto, alguma coisa em nós se torna clara, iluminada, e nos encontramos e nos reconhecemos dentro dessa clareza.
Resta-nos abrigar esses seres, esses inimigos. Abrir os braços e recebe-los carinhosamente. Parar de brigar com eles, pois assim paramos de brigar com nós mesmos, e isso é um belo exercício para descobrir o amor em nossa vida. Quando reagimos em igualdade de condições com os que nos atacam, nos tornamos iguais a eles, e nada é aproveitado, sobra apenas um desinteressante desgaste de energia.
Não podemos ser tolos e simplesmente nos submetermos à chatice das pessoas, à agressão e provocações gratuitas, devemos reagir o mais inteligentemente possível e estabelecer os limites do respeito e do cuidado que uma pessoa deve ter com a outra, principalmente e se possível, dando o exemplo. Mas como esses ataques acontecem tantas vezes, independente de nossa vontade consciente, precisamos aproveitar a oportunidade para olhar nosso interior e descobrir porque estamos dando espaço para isso acontecer, porque estamos atraindo esse tipo de comportamento nos que estão fora de nós, porque estamos merecendo isso. Quando entramos em contato com o símbolo que está gerando essa reverberação no mundo exterior, nas pessoas, quando compreendemos o princípio que está causando essa ressonância dissonante na realidade aparente, passamos a administrar e conviver harmoniosamente com essa energia dentro de nós e nesse instante, como por encanto, o inimigo deixa de existir, deixa de incomodar. Simplesmente desaparece, até se tornar novamente necessário.
E sobra mais espaço e mais tempo para amar.
A compreensão do mecanismo projetivo através do confronto e da aceitação dos princípios internos que geram nossas expectativas, – função perfeitamente explicada pelo fluxo e refluxo de energia entre o Ascendente e o Descendente do horóscopo- , é uma fórmula para gerar expectativas mais positivas e parar de responsabilizar o que está fora de nós pelas nossas mazelas. Devemos nos lembrar sempre que o verdadeiro inimigo está dentro de nós, começa em nós..
Quando aceitamos esse fato e percorremos nosso interior com o olhar do espírito e com legítima doçura, a vida se modifica de uma maneira intensa e poética. Os inimigos não deixam de existir, eles são absolutamente necessários para nosso crescimento, mas aprendemos a lidar com eles de forma diferente, amorosa, enriquecedora. Aprendemos a lutar com suavidade e sem que haja necessariamente perdedores. Todos ganham.
Nesse momento, quando atingimos essa compreensão, só nos resta agradecer a nossos inimigos por existirem. E quando agradecemos de coração a nossos inimigos por aquilo que nos ensinaram é porque estamos de fato aprendendo o que é o amor, estamos aprendendo a amar.

Segue um um poema de Bertold Brecht, que fala do inimigo, apenas para complementar essas reflexões e aproveitar o canal de comunicação com o infinito que são os poetas:

AOS QUE HESITAM
Bertolt Brecht
Você diz:
Nossa causa vai mal.
A escuridão aumenta.
As forças diminuem.
Agora, depois que trabalhamos tanto tempo,
Estamos em situação pior que no início.
Mas o inimigo está mais forte do que nunca.
Sua força parece ter crescido.
Ficou com aparência de invencível.
Mas nós cometemos erros, não há como negar.
Nosso número se reduz.
Nossas palavras de ordem estão em desordem.
O inimigo distorceu muitas de nossas palavras, até ficarem irreconhecíveis.
Daquilo que dissemos, o que agora é falso: tudo ou alguma coisa?
Com quem contamos ainda?
Somos o que restou,
Lançados fora da corrente viva?
Ficaremos para trás,
por ninguém compreendidos e a ninguém compreendendo?
Precisamos ter sorte?
Isto você pergunta.
Não espere nenhuma resposta senão a sua.




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