A Palavra e o àṣẹ

A Palavra e o àṣẹ

Assim como o idioma, a cultura ioruba originariamente é ágrafa.

Não há registros escritos quer de sua liturgia, quer  de suas normas.

Por isso à palavra é adicionado o componente da verdade. Se não há contrato, portanto, a palavra é que tem que valer.

A palavra é o próprio documento, seja ele histórico, religioso, científico, etc.

Assim sendo, o iorubano não tolera a mentira.

O povo ioruba tinha por costume só escolher e pronunciar o nome de uma criança recém-nascida, após o rito adequado (ìkómọjáde), pois seu significado ao ser dito, começaria a provocar uma reação cósmica.

Em todo esse processo, a palavra funciona como ativadora do àṣẹ.

É através dela que o nome do recém nato é pronunciado, criando uma conexão entre a sina por ela escolhida e sua trajetória no mundo.

Em síntese, a palavra é a propulsora de sua energia e do poder dos ancestrais.

O Homem pisa no destino com a herança dos ancestrais, conquanto,  a palavra é o liame que une o material e o imaterial: desejo e realização.

Tudo contido em um nome.

Por exemplo: cada vez que esse nome for pronunciado, ao longo da existência daquele indivíduo, novamente será ativada aquela energia.

A tradição oral é uma maneira filosófica de se transmitir conhecimento de forma dosada, no momento exato em que o interlocutor estiver maduro para conviver com o novo saber.

Para a cultura ioruba, o que se sabe é diferente do que se vivencia.

Por isso, o Candomblé é uma religião vivencial, onde a experimentação jamais poderá ser substituída pela teorização.

A oralidade, portanto, não é traço de primitivismo, como alguns precipitados equivocadamente julgam. Antes pelo contrário, a oralidade constitui uma filosofia de vida, uma visão ímpar de transmissão do saber.

A palavra desperta o àṣẹ e este é o elemento essencial à existência.

Enquanto imaterial, o àṣẹ é a energia contida em todos os seres e coisas.

O àṣẹ é a capacidade de realização, a vontade e a ação. Ter “àṣẹ” é por conseguinte, ter poder de realizar.

Os sacerdotes de Candomblé são denominados por alguns, como Bàbálàṣẹ ou Ìyálàṣẹ (Pai de axé ou Mãe de axé).

A própria Casa de Culto, é definida como Ilé Àṣẹ (Casa de Axé).

A palavra àṣẹ é também utilizada como forma de saudação. Desejar “àṣẹ” a alguém é querer bem.

Responder “àṣẹ” a algum pedido, louvação ou invocação positiva, significa dizer “que assim seja”.

Cada òrìṣà, enquanto expressão da natureza, sentimentos e emoções, tem seu próprio àṣẹ, como energia compatível e correspondente.

Os símbolos e paramentos litúrgicos de cada òrìṣà são portadores do àṣẹ das divindades.

O abẹ̀bẹ̀ (leque) de Ọ̀ṣùn, é a própria representação da vaidade, do encanto, da sensualidade e da feminilidade regidas por essa divindade. O abẹ̀bẹ̀ é a expressão do àṣẹ de Ọ̀ṣùn.

A paz, a saúde, a felicidade, o dinheiro, são também expressões de àṣẹ.

Quando estamos equilibrados, ficamos em sintonia com o àṣẹ positivo.

O culto aos àwọn òrìṣà (orixás), através da liturgia do Candomblé serve justamente para buscar a moderação entre a humanidade e seus deuses, através da manipulação do àṣẹ dos elementos da natureza usados nos rituais.

As oferendas e os sacrifícios são cuidadosamente prescritos pelos sacerdotes, como maneiras de interligar os fiéis aos deuses, através do àṣẹ de cada ingrediente.

As folhas utilizadas nos banhos rituais devem ter o àṣẹ, enquanto elemento apropriado, à necessidade do paciente.

Daí a necessidade de conhecer as folhas de apaziguamento, ou as de energização, por exemplo.

Os iorubas, há milhares de anos, já haviam descoberto que o universo não é feito de átomos, mas de àṣẹ.

O àṣẹ seria a menor partícula do cosmo.

Portanto, os átomos também seriam compostos desse elemento tão especial.

É o àṣẹ que nos move, nos conduz, nos complementa, nos cerca e nos constitui, física e espiritualmente.

A interação entre os Homens e a natureza que os cerca, passa a fazer mais sentido quando compreendemos que tudo à nossa volta é composto pela mesma partícula primordial: o àṣẹ.

Como ele está em nós, assim como está em nossos semelhantes, nos animais, nas plantas, etc., é mais do que necessário enxergarmos todos os seres como nossos irmãos: todos constituídos da mesma essência, da mesma matéria prima, da mesma “lama primordial”.

A arte da vida e os mistérios da morte giram em torno desta força tão poderosa e ao mesmo tempo sutil, o àṣẹ.

No trato das ervas, é através da palavra rezada que Ọ̀sányìn é invocado para permitir a colheita, para autorizar o aproveitamento e, sobretudo, para despertar do àṣẹ de cada planta.

A palavra pode tomar várias formas e propósitos, como orin (cântico); ọfọ̀ (encantamento); oríkì (louvação); ìtàn (conto); òwe (provérbio), àdúrà (reza) e ẹsẹ (poema de Ifá).

Vale dizer que em cada formato, ganham um estilo diferente, caracterizando-se em ferramentas adequadas a cada finalidade.

Ora mais curtos e objetivos, como os òwe; ora mais longos e detalhados, como os ìtàn; enigmáticos como os ọfọ̀; metafóricos, como os oríkì; ou descritivos, como os orin.

É bem verdade que muitas destas características permeiam todos os estilos, mas alguns atributos são mais presentes neste, ou naquele formato.

Inequívoco é que a palavra é a ferramenta de comunicação entre Homens e deuses, despertando o àṣẹ desejado.

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Marcio Righetti

Márcio de Jagun, Babalorixá, professor de cultura e idioma ioruba na Uerj e na Uff, escritor e advogado. tel.: 99851-6304 (cel/wz) e-mail: ori@ori.net.br Facebook: Márcio de Jagun blog.ori.net.br

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