Mágoa – Caçadores de Mágoas IV

Mágoa – Caçadores de Mágoas IV

Netuno, mágoas além do pensamento

Netuno é a oitava mais fina desse trio de planetas que simbolizam nossa capacidade de sentir e se integrar à realidade. Está vinculado ao aspecto transpessoal da realidade e dos sentimentos.

Muitos autores afirmam que Netuno representa a compaixão, que corresponde a um estado de amor universal, de identificação com a espécie, com a condição humana como um todo. Bem, pode ser, mas é muito comum que essa palavra seja confundida com piedade, pena do sofrimento dos outros, empatia com quem está inferiorizado por alguma circunstância existencial, e nesse caso, a palavra compaixão perde seu sentido maior e se transforma em exercício de poder, em presunção e arrogância daqueles que se acham melhores que os outros. Mais uma vez a importância pessoal se faz presente.
O planeta Netuno simboliza a identificação, em níveis mais elevados ou transpessoais, além dos limites da razão, além da observação lógica, em sintonia com o sentimento e o instinto em sua expressão mais refinada e delicada.

Exatamente por isso o reconhecimento dos sentimentos despertados no plano de Netuno e a redução desses sentimentos a um discurso lógico e formal se torna bastante complexa. Vivemos a experiência no plano de Netuno, nem sempre compreendendo sua origem ou como ela se processa, e por isso tantas vezes a ela é atribuída uma origem divina.
A identificação com o sofrimento da humanidade como um todo, origem e princípio do surgimento de tantos mártires e profetas durante a história do mundo, pode representar o aparecimento da mágoa em seu nível mais sofisticado e não administrável.

Mágoa pela traição divina, pelo abandono de Deus, pela expulsão do paraíso e por conclusões semelhantes às quais nossa mente pode nos conduzir na tentativa de reduzir esse sentimento de identificação tão amplo a mínimos denominadores comuns.

Netuno pode representar o canal através do qual nosso ser se conecta com o inconsciente coletivo. Pode significar também nosso potencial de elevar nosso espírito a níveis muito além da razão e do discurso formal, colocando-nos em contato com linhas de força que percorrem o universo, meridianos de energia divina, que constituem uma realidade invisível, algo que só pode ser percebido pelo sentimento.

Nossa conexão ferrenha com a realidade material, com as necessidades do corpo e da mente, muitas delas criadas e artificiais, faz com que tenhamos a tendência de traduzir as energias representadas por Netuno para lugares comuns, empobrecendo seus significados, reprimindo suas possibilidades maiores e transformando essas possibilidades em distorções mentais, máculas, mágoa…

É um tipo de mágoa incontrolável, imensa, inacessível, por mais que tentemos transforma-la em sentimentos comuns. A sensibilidade netuniana contida e não vivenciada se transforma em angústia, em um poderoso sentimento de solidão infinita, cósmica, além da solidão social, além na necessidade de companhia humana, além do desejo.

O poeta Augusto dos Anjos, com seu estilo peculiar de registrar sentimentos e traduzir conteúdos da psique coletiva, escreveu a respeito da mágoa o pequeno poema que segue:

ETERNA MÁGOA

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
Augusto dos anjos

O que podemos fazer diante de sentimentos tão poderosos?
Como lidar com essas três dimensões apresentadas a respeito da mágoa e do ressentimento?

Podemos começar entendendo que, como o princípio gerador da mágoa está registrado na memória, representada pela Lua, se manifesta mentalmente através da expressão de Vênus e se torna um sentimento que parece estar além da própria pessoa, além do corpo físico e do gesto, através da manifestação em nós de Netuno, a solução para todos os representantes da mágoa e do ressentimento é praticamente a mesma, por serem todos esses símbolos níveis diferentes de uma mesma vibração, oitavas distintas de uma mesma nota.
Precisamos resgatar a criança que nos habita e que está ferida, machucada pelas exigências tantas vezes absurdas que a vida lhe impôs, com todos os sentidos sensibilizados como órgãos inflamados, e portanto, vulnerável à mágoa, presa à recordações dolorosas das quais não consegue se desvincular, tendo que incorporar comportamentos ressentidos para se resguardar de sua dor tão profunda.
Precisamos libertar essa criança, deixar ela escolher, deixar ela optar por ser quem ela quer e pode ser, deixar ela se rebelar e dizer não a tantas imposições morais e comportamentais que não lhe dizem respeito, permitir que sua afetividade seja expressa sem medo de ser ridicularizada ou rejeitada. É necessário apresentarmos a essa parte de nosso ser, a mais pura, a mais inocente, a mais limpa, a possibilidade de fazer novas escolhas, o fato de que ela não tem que ser mais ou menos importante que nada ou ninguém para ser aceita e amada, ela apenas precisa ser ela mesma para que nós possamos ser nós mesmos e nos libertemos da mágoa.
Precisamos também mostrar a essa criança interna que tudo é infinito, que tudo é uma única serpente cósmica de energia encadeada e cada parte dessa energia está intimamente ligada a todas as outras partes, cada manifestação da energia divina, cada ser que surge e se manifesta nesse plano, está conectado a todas as outras partes, a todos os outros seres, e que, exatamente por isso, ninguém está realmente só, ninguém está separado da totalidade do universo, e cada parte tem seu papel, tem sua tarefa, tem sua função estabelecida harmoniosamente e integrada à totalidade do infinito.
Por isso não estamos sós, por isso não somos nem mais nem menos que nada, por isso estamos equipados e prontos para sermos felizes, sem mágoa e sem ressentimento e por isso, não há nada de fato a perdoar. O perdão não é a solução para a mágoa. A solução é o amor e a compreensão e principalmente, a consciência de que não somos mais importantes que nada. Cada ser nesse planeta é a diferença em si mesmo e, portanto, não tem que sofrer por se sentir inferiorizado ou traído pela vida.
Estamos apenas aprendendo, e se tivermos a humildade e a paciência de agirmos a partir dessa premissa, de que estamos aqui para aprender, todos nós, todos os viventes, a vida será mais fácil, todas as mágoas perderão o sentido, todos os ressentimentos se tornarão tolos reflexos da vaidade e então, poderemos amar sem medo, poderemos nos entregar sem medo, exatamente como uma criança faz, exatamente como a criança que está dentro de nós pode fazer.

Bem, fazendo todas essas reflexões, permitindo que o pensamento fluísse, me dispondo a buscar dentro de mim as respostas ao sentimento que me invadiu nessa manhã, aconteceu algo delicioso: a tristeza foi embora, como surgiu se foi, se diluiu como uma nuvem no sopro do vento.
Já posso prosseguir, mais leve e com o sentimento de que as mágoas não precisam ser alimentadas, com a constatação de que, como diz a música de Milton Nascimento :

“há um menino, há um moleque, que mora dentro do meu coração, cada vez que o adulto fraqueja, ele vem pra me dar a mão…”

Valdenir Benedetti
Dezembro/2001




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