O que é essencial?

O que é essencial?

O Candomblé é uma religião brasileira, de matriz africana. Foi forjada aqui ao longo dos anos, desde que mulheres e homens negros, assim como seus descendentes, decidiram resistir, manter sua última trincheira de liberdade preservada: a fé. Transformaram a violência que lhes torturava, em incentivo. A pouco e pouco, inimigos de outrora aprenderam a se unir, a rezar juntos a professar juntos. Etnias rivais, constituíram um conglomerado sócio, cultural, religioso aqui no Brasil. Século após século, as perseguições continuaram, mas não foram capazes de os vencer. Somado a isso, como se fosse pouco, pandemias atravessaram a realidade. O mundo, o Brasil e os religiosos foram entrecortados por doenças arrasadoras, que modificaram a realidade. O Candomblé e seus adeptos, também sofreram esses impactos. O surto da febre amarela, entre 1849 e 1850; a Gripe de 1918 (1918-1920); a COVID-19 (iniciada em fevereiro de 2020); assim como antigas moléstias, como a Peste (1347-1351), juntas, mataram milhões de pessoas. Diante delas o mundo se transformou. Compreender como o Candomblé infere filosoficamente as doenças, a relação estabelecida com os deuses do panteão que regem a saúde e a doença, assim como seus processos curativos, são fundamentais. Entender as possibilidades de escolha do destino e dos pontos em que ele entrecruza com o de outras pessoas, faz total diferença em nossa vida. A doença é vista filosoficamente pelo ioruba como uma mensageira, como uma potência que nos traz “recados”, que pode catalisar a aquisição de virtudes. Assim, as endemias podem ser entendidas como percalços, como chances para que humanidade reavalie sua conduta, seus valores e princípios. Diante das crises, devemos aprender com os erros e a buscarmos virtudes. Diante dos desafios, é preciso nos conectarmos ao divino. É oportunidade de reconhecermos a fragilidade e a importância da vida, para que ela seja devidamente valorizada. A doença é convenientemente taxada como a nossa “inimiga”, como um mal a ser “vencido”. Na verdade, nós humanos, é que precisamos entender melhor quem é o inimigo de quem. Essa reflexão pode nos mostrar que nós, seres humanos, temos sido inimigos muito mais ferozes e destrutivos da própria humanidade, assim como o meio em que vivemos, do que qualquer outro mal, ou fator externo. Precisamos adequar nosso meio de vida, nossas buscas.
O ajustamento das práticas impulsionará, naturalmente, a criação de novas estratégias que serão mantidas após a pandemia. A dimensão inédita da crise atual para uma geração inteira, deverá trazer consequências culturais e práticas, como a rediscussão do papel do Estado a fim de resgatar economias esfaceladas, a valorização de sistemas públicos de saúde e transformações no regime de trabalho — com estímulo ao desempenho de atividades à distância. A sociedade pós-pandêmica poderá apresentar mais restrições à circulação de pessoas entre fronteiras, mas também uma busca ainda maior por cooperação científica internacional.
Uma tendência natural pela preocupação e desenvolvimento com a saúde e com o ambiente, podem ser saldos favoráveis, pós crise. O trabalho à distância, o isolamento social, os cuidados mais intensos com a higiene e algumas adaptações de ritos, certamente chegaram para ficar. Os recursos tecnológicos poderão facilitar a educação, o novo trabalho remoto, e até mesmo mais espaço para debates e reflexões filosóficas, ganhando amplitude sobre as práticas e ritos. Essas novas interações sociais estão ocasionando aos cidadãos, um maior engajamento social e político. O necessário mesmo, o essencial, é focar na solidariedade, na erradicação da miséria, na difusão e na inclusão na educação. Precisamos de justiça social. Precisamos de uma revisão de nossos valores, de nossas metas pessoais e coletivas. O mundo está carente de consciência individual e coletiva. A morte, Ikú, e Àrùn, a doença, já caminham entre nós desde que a humanidade surgiu. Entretanto, Ọlọ́run, o Ọlọ́jọ́ Òní (O Senhor de Hoje e de Todos os Dias) – o Criador – em sua sabedoria infinita, sempre nos proveu e sempre nos proverá. Façamos a nossa parte. Para isso, a esperança, as atitudes assertivas e produtivas são necessárias à sobrevivência.
Em todos esses milhares de anos que nos antecederam, mesmo após graves crises, doenças e catástrofes, sempre houve um novo amanhecer.
Muitos clamam por um recomeço. Penso que retomar de onde paramos, refazer o que fazíamos, ser novamente o que já éramos, não dá mais. Não deu certo. No mundo pré pandemia, não demos conta de um monte de crises e problemas que se acumularam. Agora, “recomeço” precisa significar “começar diferente”. Àṣẹ!
Trecho do livro “O Candomblé em Tempos de Crise – Pensando a Religião Antes, Durante e Depois da Pandemia”, de Márcio de Jagun. O autor é Babalorixá, professor, escritor. ori@ori.net.br




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Marcio Righetti

Márcio de Jagun, Babalorixá, professor de cultura e idioma ioruba na Uerj e na Uff, escritor e advogado. tel.: 99851-6304 (cel/wz) e-mail: ori@ori.net.br Facebook: Márcio de Jagun blog.ori.net.br

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