O corpo como altar

O corpo como altar

O corpo, segundo os iorubas, é observado a partir de sua compleição, da disposição simétrica e proporcional de seus membros. Decerto isso já indicaria a busca de estabilidade, de harmonia.

A saúde física é alcançada a partir do equilíbrio entre o corpo e as emoções.

Neste contexto, o culto à natureza se apresenta como mediador entre tais elementos.

Harmonizar tanto Homens, quanto deuses, corpo e natureza, é o objetivo de todos os ritos e liturgias do Candomblé.

O corpo físico é um veículo e é um detentor de àṣẹ.

Por tal razão, os iorubas entendiam a necessidade de reativar este àṣẹ através de obrigações rituais periódicas, como ẹbọ de limpeza, banhos e demais liturgias.

Afinal, o corpo do iniciado torna-se um altar vivo da divindade.

Nos ritos iniciáticos, o corpo recebe incisões, oferendas, pinturas, banhos de vários tipos e procedências, os cabelos são raspados.

O corpo é “limpo”, purificado e apresentado à rua, à mata, ao tempo, à praia, à cachoeira. Do mesmo modo, ao ilé ìbọ òkú (local de culto aos ancestrais).

O corpo é assim preparado para se tornar um elemento divino, um corpo-altar, imantado pela natureza e integrado aos ancestrais.

Através do corpo, a divindade irá se manifestar.

Pela boca do iniciado, o Òrìṣà falará. Por suas mãos, a divindade promoverá cura, alento, energia.

O corpo é um veículo de comunicação entre Homens, deuses e as forças da natureza. Indivíduo, divindade e comunidade se entrelaçam através do corpo.

O corpo de um adepto acaba compondo uma espécie de egrégora, algo como um compêndio sócio-cultural-religioso, juntamente com os corpos dos outros membros da comunidade.

Os efeitos sobre os corpos individuais ressoam no grupo.

A saúde e o equilíbrio espiritual de um, pode repercutir nos outros.

Por este princípio, quando um adepto está “recolhido” (em situação de retiro espiritual), toda a comunidade fica imersa em cuidados coletivos com seus corpos: devem evitar o consumo de álcool, sexo, discussões ou assuntos não edificantes; devem usar trajes litúrgicos dentro das dependências do templo; devem se lavar com banhos de ervas, etc.

Todos esses procedimentos ou preceitos, relativos aos corpos de cada membro do ẹgbẹ́ (sociedade), objetivam que não haja qualquer energia negativa que atrapalhe a sacralização do corpo do indivíduo.

Eis uma prova inequívoca de que corpo individual e o “corpo coletivo” são entrelaçados por elos de comprometimento social e energia espiritual.

Daí, o princípio da “irmandade” presente nas comunidades de terreiro.

Embora o corpo seja um “compêndio” inter pessoal e inter natural, sua individualidade é ensinada pedagogicamente ao Homem.

Quando um neófito é iniciado, após a cerimônia do dárúkọ que culmina tal processo, é realizado um rito denominado unlẹ̀ (literalmente: un = pron. pess. “eu” – usado no tempo futuro + lè = verbo procurar).

Esta cerimônia tem o propósito de reapresentar ao indivíduo seu próprio corpo; porém, agora sob outro prisma.

O indivíduo “procura” uma nova dimensão do seu corpo. E quem lhe ensina isso é o grupo, a comunidade. Neste procedimento, cada parte do corpo daquele que foi iniciado, lhe será apresentado no idioma ioruba.

Considerando que o processo iniciático propõe o renascimento do indivíduo, no unlẹ̀ este “novo ser” aprenderá, ou reaprenderá a conhecer-se e a compreender seu corpo como uma ferramenta para realização do seu destino.



(Trecho do livro Ewé – a Chave do Portal, de Márcio de Jagun)
Márcio de Jagun
Professor, advogado, escritor e Babalorixá.
ori@ori.net.br

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Marcio Righetti

Márcio de Jagun, Babalorixá, professor de cultura e idioma ioruba na Uerj e na Uff, escritor e advogado. tel.: 99851-6304 (cel/wz) e-mail: ori@ori.net.br Facebook: Márcio de Jagun blog.ori.net.br

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