Crônica fotográfica: “Morte: da indignação ao entendimento”

Crônica fotográfica: “Morte: da indignação ao entendimento”

“Morte: da indignação ao entendimento”
“Morte: da indignação ao entendimento”

Sempre quis fazer um ensaio fotográfico mais intimista e significativo em um cemitério. Ainda que tenha vivido em Sampa por mais de quarenta anos e ido numerosas vezes à França, jamais imaginei realizá-lo nos cemitérios cafonas de Paris nem em suas cópias paulistanas – ainda mais cafonas que as francesas por imitarem a cafonice europeia.

A grandiosidade de Père-Lachaise e de sua réplica pobre da rua da Consolação me parecem um enorme contrassenso; os túmulos suntuosos e enormes destoam do sentido simples e democrático da morte, que não distingue rico de pobre, preto de branco.

Mármore caro e esculturas majestosas não mudam a linearidade da finitude e destacar os feitos de um defunto através da imponência arquitetônica tumular é estéril; Mozart foi enterrado em local desconhecido, provavelmente como indigente – e alguém ousa questionar a magnitude de sua obra ou mesmo compará-la a Rossini, cujo jazigo na Igreja de Santa Croce em Florença é mais imponente e mais caro que a casa de pelo menos metade dos brasileiros?

Necessitava escolher para minhas fotos um cemitério modesto, que retratasse a austeridade da morte. E encontrei-o no despojamento do oeste mineiro.

“Morte: da indignação ao entendimento”
“Morte: da indignação ao entendimento”

A intenção primeira de registrar fotograficamente o local de descanso dos restos mortais de tantas pessoas foi retratar minha relação com a morte, uma relação cuja única constante é meu ateísmo e que no mais veio transformando-se ao longo de meus quarenta e nove anos de vida. Dividi essa relação em três fases distintas, que somam nove fotos no total.

As três primeiras imagens dizem respeito à primeira fase de minha relação com a morte e trazem um pouco de indignação, um tanto de medo e muito de não entendimento; produzi essas fotografias sem foco, retratando desse modo a distância temporal dessa minha temerosa percepção inicial da mortalidade e a consequente incompreensão da finitude que tomou quase toda minha juventude.

“Morte: da indignação ao entendimento”
“Morte: da indignação ao entendimento”

As três imagens seguintes são referentes à segunda fase de minha relação com a morte e vem carregadas da tristeza de ter sido afetado em cheio pelo vazio que a acompanha. O ápice dessa fase deu-se com a perda de meu pai, grande amigo e mentor. Produzi essas fotos com pouca luz e carregadas de dramaticidade na forma de contraste e sombras (foram as únicas nas quais usei flashes), justamente para representar o golpe que é ter sacado da convivência cotidiana aqueles que amamos e julgamos imprescindíveis.

 

 

“Morte: da indignação ao entendimento”
“Morte: da indignação ao entendimento”

As três últimas imagens são referentes à minha atual fase de relação com a morte, inaugurada após o impacto da leitura de “As intermitências da morte” de José Saramago, há uma década; mais que fazer as pazes com o passamento, compreendi a natural importância do morrer graças à genialidade e à fina ironia do mestre português que, em pouco mais de duzentas páginas, escancara no livro mencionado a importância fundamental da morte para o funcionamento de nossa vida em sociedade e, portanto, como o fim de cada vida individual é pré-requisito para a vida coletiva poder seguir em frente.

“Morte: da indignação ao entendimento”
“Morte: da indignação ao entendimento”

Na ficção mundana de Saramago o alívio no país onde não há mais morte foi rapidamente substituído pelo caos: hospitais lotados, previdência em cacarecos, espaços tomados por uma massa insustentável de pessoas caquéticas evidenciam a notabilidade da renovação que só a libitina traz. Foi assim que resolvi finalizar o ensaio com fotos mostrando a interação da localidade com o cemitério, exaltando uma relação de unidade; a cidade entende que sem a morte não existiria, por isso engole arquitetonicamente o cemitério tornando-o sua parte indelével, como se fosse da urbe-célula uma estrutura fundamental a permitir seu contínuo metabolismo. O cemitério passa a parecer com a cidade e vice-versa.

“Morte: da indignação ao entendimento”
“Morte: da indignação ao entendimento”

Por fim resolvi prover unidade ao ensaio tratando todas as imagens em preto e branco; no meu entender a morte não tem tons e exprime o encerramento da vivacidade das cores.

A morte é um tema que deve ser discutido e não evitado. É preciso entendê-la e usar parte do tempo da vida para amadurecer a percepção que se tem do fim – mesmo porque em um universo dinâmico todo fim significa obrigatoriamente um novo começo.

“Morte: da indignação ao entendimento”
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Alexandre Périgo

Mais um em meio à multidão. alexandreperigo@uol.com.br

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