A Numinosidade da Sexta-Feira da Paixão
A Numinosidade da Sexta-Feira da Paixão
Me coloco na confortável condição de comentar porque embora tendo sido criada dentro da religião católica e vivido todos os seus ritos, há muito deixei de ter uma religião ¨oficial¨.
Pouco a pouco, fui internalizando o conceito da divindade em mim mesma, e valorizando todas as manifestações externas e internas do sagrado com o mesmo peso, assim como com a mesma régua.
Concomitantemente, todas as religiões e suas manifestações me despertam igual interesse
Desloquei o conceito religioso de Jesus para seu papel histórico, não menos importante.
Não obstante, alguns episódios me pegaram de surpresa ao longo da vida.
O primeiro deles, há mais de 10 anos.
Todos os anos levava minha mãe à Igreja na sexta-feira da Paixão porque seu clamor era por beijar os pés do ¨Senhor¨.
Pois bem, não costumava entrar na Igreja, ficava no carro aguardando seu retorno da cerimônia de vital importância para ela.
Contudo, houve um ano em que ela demorava a retornar e decidi estacionar e entrar na Igreja.
Não fui ao encontro dela, fui tocada pela cena que assisti.
No altar, uma mãe amparava o corpo de seu filho morto. A Igreja às escuras. Quanto à iluminação, apenas as velas acesas dos fiéis.
Na outra ponta do altar, um rapaz tocava violão e cantava músicas que evocavam a dor da cena.
Me encostei numa das pilastras da Igreja e chorava copiosamente. Sentia em mim a dor de todas as perdas de todas as mães, e especialmente, daquela que era iluminada pelo único foco de luz.
Foi um choro compulsivo e eu nem percebia a passagem do tempo. A numinosidade da cena me arrebatou.
Não percebi o final do rito religioso, apenas chorava. As luzes da Igreja se acenderam, e minha mãe ao sair se deparou com essa cena de me encontrar aos prantos encostada na pilastra.
A cena emocionou minha mãe. Festejava meu retorno à religião da família e eu só dizia que ela não estava entendendo, mas que explicaria depois.
Ao chegar em casa, expliquei que foi um momento em que transcendi ao fator religioso.
Uma experiência numinosa que me conectava com a dor do mundo e com a vulnerabilidade da vida.
Naquele momento específico, me conectava com a dor de todas as Marias, Raimundas, Cesárias, Inácias, etc… que pranteavam a perda de seus filhos das maneiras mais diversas.
Ela custou um pouco a entender, queria entender da maneira que mais lhe satisfazia.
Doravante, a ¨Semana Santa¨ para mim, passou a ter outra tonalidade.
A Páscoa não me envolvia em nada, mas a sexta-feira da Paixão, sim.
Ela evocava nossa fragilidade frente ao destino. As Nornas, Parcae, Moiras, etc… nos tinham sob seu poder e cortavam o fio da vida quando lhes conviesse.
Desde o ano passado, já na pandemia passa pela minha rua, um carro de som com o Padre rezando uma missa itinerante. As músicas belíssimas, contagiantes.
Hoje deu-se o mesmo, e com ela, a compreensão de que seguíamos dentro de uma pandemia e de quantas mães pranteavam a perda de seus filhos.
Fui tomada pelos mesmos sentimentos e o pranto corria solto e livre. Uma verdadeira catarse.
Custei a me recompor, estava tomada pela mesma dor de mais de 10 anos atrás, só que agora bem mais perto, constatável diariamente pelo momento que a humanidade atravessa.
Entre as lágrimas, o apelo de que fosse a última vez que essa tocante cerimônia precisasse ser feita pelas vias públicas.
Que ela pudesse ser vivenciada pelos fiéis no local que lhe cabe, dentro das Igrejas. Todos irmanados sem temerem a proximidade uns dos outros.
Que assim seja!!!
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